domingo, 30 de abril de 2017

Se os holandeses tivessem vencido em Guararapes, seríamos um país desenvolvido?

Estou na Holanda, quase voltando ao Brasil. Ao passear por ruas limpas, canteiros de tulipas no Keukenhof, clima ameno de primavera, arquivos e bibliotecas organizados, vem ao cérebro de um brasileiro a ideia de como a história batava resultou no que contemplo e, quase por antítese, como a história brasileira nos conduziu até aqui. 
É um tema que apaixonava pessoas no passado: explicar as diferenças nacionais e sociais e, principalmente, o motivo de um “atraso” brasileiro. O devir nacional, como tema da História, tratava do nosso “atraso” comparativo. O problema do subdesenvolvimento deu lugar ao da desigualdade. Este, rapidamente, cedeu terreno às discussões sobre nossa corrupção aparentemente genética.
Para entender por que éramos subdesenvolvidos, invocamos, no passado, questões raciais. Foi assim no século 19 e no início do 20 (e talvez até hoje no inconsciente social). Sílvio Romero, por exemplo, esperava pouco de um país que teria misturado o pior de tudo na sua mentalidade: portugueses, africanos e indígenas. Determinações racistas já foram defendidas em livros e universidades. Um efeito colateral desse viés é pensar: e se os holandeses tivessem vencido em Guararapes, seríamos um país desenvolvido? Bem, a colônia holandesa da Indonésia seria uma boa resposta. 
Determinismos geográficos e climáticos também já foram hipótese. O Brasil é tropical: sol e calor, impeditivos da disciplina do trabalho. O frio estimularia a poupança e o pensamento estratégico. Se eu não guardar alimentos, estocar conservas ou lenha, morrerei. Rigores climáticos seriam aliados de desenvolvimento. Num país tropical, como o em que eu moro, “abençoado por Deus e bonito por natureza”, eu seria feliz sempre, rico nunca. Se isso fosse correto, economias mediterrâneas, a Austrália e a Califórnia seriam terras paupérrimas.
No cadinho dos preconceitos, já colocamos raça e clima. Falta o toque supremo, a explicação de cunho histórico: a colonização portuguesa. Catolicismo, aversão ao mundo do trabalho árduo, visão estatista do mundo, rejeição do pensamento crítico e racional: tudo isso veio no pacote lusitano. Como ser uma potência se nosso progenitor, Portugal, não o é? O que geraria um país pequeno e pobre da Europa? Um país grande e pobre na América. Essa explicação omite muito: Portugal foi uma potência nos séculos 15 e 16; o Brasil está longe de ser pobre... 
Quase toda discussão em torno do tema desenvolvimento pátrio e suas inviabilidades termina com uma tautologia: “Isso é o Brasil”! Assim sendo, pelo destino, pela natureza, pela história e pelas pessoas, somos, como no filme de Sérgio Bianchi: cronicamente inviáveis. Nossa sociedade repetiria, incessantemente, o mantra inevitável de desordem, caos, ineficácia, corrupção, atrasos, caráter predatório dos agentes econômicos e um estatismo gigantesco. O Brasil sempre seria o Brasil e todo Mauá fracassaria aqui, porque o empreendedorismo encontraria, na zona tupiniquim, seu túmulo perfeito. 
No contexto do quarto centenário de São Paulo, meu conterrâneo, Vianna Moog, pensou na comparação entre os bandeirantes do Brasil e os pioneiros dos EUA. Seu raciocínio passa pelas considerações geográficas e inclui a questão do calvinismo. O enfoque weberiano associa ao sucesso econômico a religião do trabalho, da condenação do ócio e da predestinação. Não existe país calvinista pobre. Em passagem interessante, Moog firma que, optando por fazer uma refeição pesada na metade do dia de trabalho, nosso almoço, escolhemos sabotar o restante do dia. Americanos comem mais no café da manhã e no jantar e consomem algo leve para o meio do dia. Menos lido hoje, o livro Bandeirantes e Pioneiros ainda traz questões pouco trabalhadas. 
A partir da influência de pensadores marxistas como Caio Prado Jr., a economia de um sistema colonial e de uma elite predatória e pouco adepta de um verdadeiro projeto nacional seria o vetor que nos acorrentava ao subdesenvolvimento. Eliminado o modelo de exportação de produtos de baixo valor agregado e instituída nova elite que pensasse o Brasil, teríamos um futuro brilhante. Esse pensamento está na base do nacional-desenvolvimentismo e de muitos projetos revolucionários surgidos ao longo da história recente. Geralmente, os projetos ligados ao pensamento conservador idealizam o passado: tudo era melhor antes, todos eram mais respeitosos, precisamos restaurar aquele amor ao país que existia outrora. Em contrapartida, a esquerda idealiza o futuro: tudo será bom se eliminar o ponto X ou Y e substituirmos essa prática por outra. O paraíso pretérito ou futuro é um divisor de águas no pensamento brasileiro.
O tema merece mais análise, claro. Interrompo aqui (voltarei depois) com um questionamento de um português muito culto. Quando pensávamos uma exposição em Portugal, uma parte do grupo repetia o mantra: somos pobres por causa de Portugal. O ilustrado lusitano ouviu muito os meus colegas e, após algumas reuniões, soltou essa: “Sim, a colonização é sempre predatória; vocês estão independentes há quase 200 anos. Não daria para ter feito algo?”. Os críticos ficaram em silêncio. A história como esconderijo é uma zona confortável. Bom domingo a todos vocês.

by Leandro Karnal
30 Abril 2017 | 04h00

sábado, 22 de abril de 2017

Cada dólar investido na pré-escola pode se multiplicar por sete

O investimento em pré-escolas públicas de qualidade traz ganhos enormes não apenas para as crianças de baixa renda atendidas e suas famílias mas para a sociedade como um todo.
É o que tem mostrado, incansavelmente, o americano James Heckman, Prêmio Nobel de Economia em 2000, com pesquisas realizadas ao longo da última década.
Em um estudo recente, o economista fez uma análise minuciosa dos retornos de dois programas de educação infantil adotados nos Estados Unidos na década de 1970, o Carolina Abecedarian Project (ABC) e o Carolina Approach to Responsive Education (Care).
Ele e seus três coautores concluíram que cada dólar investido nos dois projetos gerou US$ 7,3 em benefícios que incluíram desde a maior empregabilidade —e, portanto, menor dependência de serviços sociais— dos beneficiários já na vida adulta até seu menor envolvimento com crimes.
As meninas atendidas aumentaram em 13 pontos percentuais sua probabilidade de terminar uma graduação quando comparadas a outras garotas de origem familiar parecida que não participaram do programa. A chance de estar empregados aos 30 anos aumentou entre 11 e 19 pontos percentuais no caso dos meninos beneficiados.
Em ambos os grupos, fatores como menor envolvimento com drogas e melhores indicadores de saúde também foram identificados.
Embora envolva a realização de cálculos e estimativas complexos, esse tipo de análise tem se tornado viável em países onde é comum que beneficiados por projetos sociais sejam acompanhados ao longo de sua vida.
Os registros servem de insumo para que pesquisadores como Heckman se debrucem sobre os dados e cheguem a conclusões úteis do ponto de vista de política pública e, algumas vezes, até surpreendentes.
O próprio Nobel de Economia descobriu que outro projeto, criado na década de 1960, em Michigan, atirou no que viu e acertou no que não viu.
O chamado Perry Preschool tinha como meta principal aumentar o QI das crianças socialmente vulneráveis atendidas. Para a frustração de seus idealizadores, isso até aconteceu num primeiro momento, mas poucos anos depois não eram mais encontradas diferenças significativas no coeficiente de inteligência das crianças participantes quando comparadas a outras, vindas de contextos parecidos, que tinham ficado de fora do Perry.
Apesar disso, quando cresceram, as meninas e os meninos participantes começaram a exibir indicadores impressionantes de sucesso tanto escolar quanto pessoal e profissional em relação aos demais.
Heckman descobriu que os efeitos positivos do Perry vinham de traços de personalidade que o programa ajudou as crianças a desenvolver, como curiosidade, autocontrole e facilidade de relacionamento com os demais.
Essas habilidades, normalmente chamadas de socioemocionais, também são trabalhadas no ABC e no Care, que buscam estimular a resolução de conflitos entre as crianças e sua capacidade de tomar decisões.
Achados acadêmicos nem sempre conversam com a realidade cotidiana, as dificuldades e as barreiras que formuladores de políticas públicas e educadores encontram no dia a dia.
Contextos culturais, sociais e econômicos diversos também podem dificultar a replicação de experiências bem-sucedidas.
Mas isso não significa que pistas e conclusões de pesquisas como as de Heckman não devam ajudar a nortear decisões.
No Brasil, em meio ao limite imposto à expansão dos gastos do governo nos próximos anos, talvez seja necessário repensar prioridades.
Nossos investimentos públicos no ensino superior ainda são quase o dobro do que na educação infantil (como proporção do Produto Interno Bruto). Embora decrescente ao longo da última década, a diferença de gasto por aluno no ensino universitário ainda é 3,7 vezes maior do que por criança na pré-escola.
Será que esse é o caminho? 

terça-feira, 11 de abril de 2017

Base nacional curricular exige laboratório de ciências que as escolas não têm

Apenas uma em cada dez escolas públicas que oferecem ensino fundamental no Brasil tem um ingrediente importante para colocar em prática algumas das recomendações da base nacional curricular em discussão no país: os laboratórios de ciência.
De acordo com dados do Censo Escolar 2015, apenas 9% das escolas públicas de ensino fundamental (1º ao 9º ano) contam com laboratórios voltados, de alguma maneira, à experimentação científica. Isso dá menos de 10 mil escolas de ensino fundamental regular, de um total de 112.393 espalhadas pelos país.
Alguns dos objetivos de ensino descritos na atual Base Nacional Curricular em discussão dependem de laboratórios de ciências. É possível, por exemplo, “desenvolver o interesse, o gosto e a curiosidade pela ciência” sem laboratórios voltados para isso? Não.
segunda versão da base que propõe conteúdos mínimos para as escolas –e que ainda deve ser reformulada– é ainda mais específica. De acordo com o documento, os alunos do 7º ano, por exemplo, devem realizar “experimentos simples para determinar propriedades físicas, como densidade, temperatura de ebulição e temperatura de fusão.” Sem laboratórios?
Mais: as turmas 7º ano também devem “distinguir substâncias de suas misturas”. E os do 8º ano devem, diz o texto, “verificar experimentalmente evidências comuns de transformações químicas.” Hein?
RUIM NA PARTICULAR
A carência de espaços de experimentação, no entanto, não está restrita às instituições públicas: as escolas privadas também carecem de laboratórios para ensinar ciências fora dos livros.
De acordo com dados do Censo Escolar, 65% das instituições privadas de ensino fundamental contam com laboratórios de ciência. As demais ensinam ciências da natureza apenas de maneira teórica.
Os dados revelam algumas obviedades. A primeira é que a Base Nacional Curricular é um grande devaneio se considerarmos a atual infraestrutura das escolas do país.
Nas áreas rurais, por exemplo, diz o Censo, só 1% das escolas públicas têm laboratórios de ciência. Como, então, implementar o que o documento propõe se a melhoria da infraestrutura dessas escolas nem sequer está na pauta?
ENSINO MÉDIO
A segunda obviedade é que, nessas condições, todo o debate sobre reforma do ensino médio –que também está em discussão no país– é questionável.
Ora, como um aluno vai escolher efetivamente sua trajetória no ensino médio, como propõe a atual reforma dessa etapa de ensino, se não teve acesso a condições mínimas para desenvolver conhecimentos científicos no fundamental?
Trocando em miúdos, estamos discutindo propostas impossíveis de serem realizadas nas escolas sem que outras medidas sejam tomadas em curto prazo.
E, pior, estamos impedindo que a imensa maioria de nossos brasileirinhos tenha condições de desenvolver a curiosidade científica, de se questionar efetivamente e de tentar achar respostas para suas perguntas por meio da experimentação.

sábado, 8 de abril de 2017

Governos tratam programas de educação como amores de Carnaval

A divulgação de uma brutal queda no número de alunos estudando em período integral no Brasil disputou espaço no noticiário com a sanção presidencial à reforma do ensino médio.
Não era para menos. Uma das metas do PNE (Plano Nacional de Educação) é que 25% dos estudantes da rede pública, contando todo o ensino básico, tenham sete horas ou mais de atividades escolares até 2024.
Vínhamos caminhando nessa direção, mas, em 2016, retrocedemos feio. As matrículas integrais na rede pública —considerando os anos finais e iniciais do ciclo fundamental e o ensino médio— somavam 16,39% do total em 2015. No ano passado, o percentual recuou para 9,61%.
A queda —puxada pelo ensino fundamental— se deveu, segundo especialistas e autoridades, a solavancos sofridos por um programa chamado "Mais Educação", lançado em 2007 pelo governo federal com o objetivo principal de fomentar a educação integral.
Segundo a imprensa, o "Mais Educação" passava por problemas de repasse aos Estados e municípios e acabou paralisado em meio à crise política.
No fim do ano passado, o governo Temer repaginou o programa por meio de uma portaria, lançando o "Novo Mais Educação".
A educação integral foi substituída no início do texto por "ampliação da jornada escolar", que não é mais citada como a principal finalidade do programa, mas como meio para atingir outro objetivo específico: "a melhora da aprendizagem em língua portuguesa e matemática".
Parece fazer sentido atrelar o aumento da jornada escolar ao efeito que se espera dela (como melhoria do desempenho dos alunos em determinadas disciplinas).
O projeto anterior falava, de forma meio confusa, de desdobramentos esperados com o aumento da jornada integral, como redução da evasão e do atraso escolar. São objetivos também citados, aliás, pela regulamentação que cria o "Novo Mais Educação".
A portaria não diz, no entanto, em que a versão antiga do programa falhou e porque está sendo alterada. Não explica tampouco porque se espera que a versão nova do projeto seja mais eficiente do que a anterior.
A busca pelo aprimoramento da política pública é sempre bem vinda e deveria ser rotineira. Mas quando esse processo não é acompanhado por uma avaliação de impacto criteriosa, de preferência independente e isenta, do que vinha sendo tentado corre-se o risco de continuar errando.
É o que acontece repetidamente no Brasil.
Por isso programas educacionais são implementados e abandonados sem nenhuma prestação de contas à sociedade.
O "Mais Educação" está longe de ser o primeiro caso. Há inúmeros outros.
Os chamados programas de correção de fluxo escolar, por exemplo, foram moda nos anos 1990 e 2000. Seu objetivo era devolver alunos atrasados para a série adequada à sua idade.
Chegaram a atender mais de um milhão de alunos em um único ano, depois foram minguando até sumir das estatísticas oficiais.
Perguntados sobre a razão do aparente abandono dessa política, há gestores que dizem que eles já cumpriram seu papel no país; outros falam que eles foram sendo eliminados a cada mudança de gestão estadual e municipal sem um motivo claro.
É fato que a reprovação e o atraso escolar caíram no Brasil, mas permanecem em patamares elevados.
Além disso, o mesmo censo escolar que revelou que as matrículas no ensino integral despencaram mostrou que, no caso do ensino médio, a taxa de distorção entre idade e série dos alunos parou de melhorar nos últimos anos.
Pode ser que os programas de correção de fluxo tenham, realmente, ajudado na queda do atraso escolar, assim como pode ser que eles tenham morrido precocemente contribuindo para a reversão recente apontada pelo censo.
Como não há uma análise de desempenho desses programas, com mensuração e documentação clara de seus efeitos, não podemos concluir nada.
E assim vamos levando, acumulando fracassos na melhora da aprendizagem de nossos alunos e abandonando programas educacionais - custeados pelos impostos que pagamos - como se fossem amores efêmeros de Carnaval.