domingo, 29 de janeiro de 2012

Como virar a página?

Se não colocar a educação de cabeça para baixo, o Brasil não passará para a primeira divisão da economia mundial
Nely Caixetaí
Revista Brasil em Exame Setembro de 1997
Se é tão fundamental para a competitividade das empresas brasileiras e do país, como nação, contar com uma força de trabalho mais educada, por que não começar a virar o jogo desde já? Para passar à primeira divisão da econômica mundial, algumas lições precisam ser colocadas em prática. Uma delas é garantir uma moeda estável. Mas a estabilidade econômica que hoje experimentamos não irá nos levar muito longe se não for acompanhada de um esforço de toda a sociedade para enfrentar o quadro desastroso em que se encontra hoje a educação no país. Dados do último censo escolar mostram que 2,7 milhões de crianças brasileiras, entre 7 e 14 anos, estão fora da escola. Que tipo de função, se é que há alguma, essas crianças estarão aptas a desempenhar quando atingir a vida adulta?
A abertura econômica, que jogou o país na competição globalizada, serviu para escancarar nossas deficiências diante dos concorrentes estrangeiros. De uma hora para outra, os brasileiros passaram a consumir uma gama variada de produtos melhores e mais baratos, produzidos lá fora por trabalhadores com um grau de instrução bem mais elevado. As estatísticas a esse respeito são cruéis para o nosso lado. A escolaridade média dos 71 milhões de brasileiros que compõem a população economicamente ativa é de 3,8 anos, um dos níveis mais baixos do mundo, comparável aos do Haiti e de Honduras. Na Argentina, a média é de 8,7 anos, no Paraguai, 9 anos, e na Coréia do Sul, I I anos. Sempre que cita esses dados, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, diz que deveriam envergonhar e humilhar as elites do país. Deveriam mesmo.
O que nunca faltou no Brasil foi discurso, alguns com pensamentos de ponta, sobre a melhor maneira de enfrentar o problema da educação brasileira. A educadora Rose Neubauer, secretária da Educação do estado de São Paulo, é uma crítica impiedosa dos modismos que sempre cercaram a questão. "Nunca houve no país um projeto sério em favor da educação", afirma Rose. Enquanto isso, lá fora, a consciência de que era preciso investir pesadamente no ensino básico disseminou-se, desde o século passado, por muitos países, como os Estados Unidos, o Japão e algumas naçõe européias. "Os países que investiram volume considerável de recursos para educar suas populações são aqueles que obtiveram maior desenvolvimento econômico", diz o americano Gary Becker, prêmio Nobel de Economia de 1992. A tarefa à nossa frente é colossal. Não basta conseguir taxas de alfabetização semelhantes às dos países industrializados. É preciso garantir também um ensino de boa qualidade. A partir de um ensino básico bem-feito é que as nossas crianças irão adquirir as ferramentas necessárias para enfrentar o mundo do trabalho, cada vez mais exigente e competitivo. É nesse período escolar que elas recebem as noções básicas e fundamentais que irão carregar para o resto da vida, em termos de conhecimento da língua pátria, uma ou outra estrangeira, literatura, história, matemática, geografia e ciências. Assentam-se aí as bases para o pensamento racional e lógico. Sem isso, elas ficarão à margem dessa nova sociedade da informação e da tecnologia, que exige cidadãos preparados para acompanhar a rápida evolução do conhecimento. "Essa nova etapa do capitalismo entrega ao sistema educacional uma imensa responsabilidade", diz o ministro da Educação, Paulo Renato Souza.
Não é por outra razão que a questão do ensino virou tema candente em todo o mundo. A boa notícia no Brasil é que começa a tomar corpo na sociedade a consciência de que a educação é uma ferramenta estratégica para o crescimento sustentado que o país deseja alcançar. O fato é que muitos empresários passaram a sentir na própria carne o que é ter mão-de-obra despreparada, destituída dos conhecimentos mais elementares da educação básica. Para muitos deles, a questão passou a ser de sobrevivência.
Eles descobriram que muitos de seus funcionários eram analfabetos funcionais, incapazes de manejar a nova tecnologia disponível na empresa. O chão de fábrica passa por uma revolução. Um ferramenteiro hoje tem de ter conhecimento de desenho mecânico e noções de engenharia para projetar no computador os moldes das peças a ser produzidas em série. Para o economista Eduardo Gianetti da Fonseca, da Universidade de São Paulo, o analfabeto do futuro não será aquele que não sabe ler nem escrever, mas sim alguém incapaz de interagir com máquinas inteligentes e participar de um processo no qual é preciso tomar iniciativas. "Quem não tiver essas habilidades vai ficar excluído", diz Gianetti.
Também o trabalhador rural tem de se adaptar aos novos tempos. Antigamente, o pai ameaçava o filho que não queria ir para a escola, dizendo que se ele não estudasse iria para a roça. Hoje, nem essa alternativa lhe resta. Para aumentar a produtividade, começa a ser introduzida no país a chamada agricultura de precisão. O grupo Algar, de Uberlândia, em Minas Gerais, passou a usar instrumentos de última geração em suas fazendas cultivadas com soja e milho. Sensores instalados nas plantações e o sistema de monitoramento por satélite ajudam os agrônomos a mapear a produtividade em cada metro quadrado da área plantada. A deficiência de fertilizantes ou a ocorrência de praga são detectadas, e as providências tomadas rapidamente.
Para lidar com esse tipo de agricultura, o trabalhador rural precisa saber bem mais do que ler e escrever. Em Paracatu. município do cerrado mineiro, as crianças da zona rural passaram a receber um tratamento muito diferente da costumeira negligência com que vêm sendo relegadas séculos a fio. Há apenas cinco anos, de 2 600 crianças em idade escolar, apenas 300 freqüentavam escolas. Hoje, o número subiu para 2 300 alunos (quase 90% do total), graças a uma série de iniciativas tomadas pela prefeitura para incentivar a educação no campo. O programa, batizado de Educar Plantando, compreende oito escolas-pólos, com cursos da 5ª à 8ª série, e 44 escolas multisseriadas, do pré-primário à 4ª série. Todas as manhãs, 13 Kombis e 12 ônibus contratados pela prefeitura recolhem os alunos na porta de casa para levá-los à aula.
No início, foi preciso convencer os pais a mandar seus filhos para a escola. Eles não queriam perder a ajuda dada pelas crianças no trabalho familiar. A solução encontrada pela prefeitura de Paracatu foi integrá-los ao projeto. São os pais dos alunos que fornecem a carne, ovos, leite, frutas e legumes usados na merenda escolar. Desde o lançamento do programa os índices de evasão caíram para mais da metade. Está em cerca de 5,6%, contra 8,8% na área urbana. A Fundação Banco do Brasil, que passou a apoiar o programa. está estendendo a iniciativa para mais de 60 municípios em todo o país.
Está claro que, num mundo moderno, a produtividade está associada diretamente à qualificação do trabalhador. Não é possível atingir prosperidade sem investimento em capital humano. Em seu livro Human Capital, Becker cita o inglês Alfred Marshall, para quem a essência do desenvolvimento residia no emprego das potencialidades das pessoas. Muitos dos problemas que Marshall viu na Inglaterra do fim do século - mau aproveitamento dos recursos humanos e desperdício na escola gerado por um alto grau de repetência e evasão ainda são os nossos problemas.
Por causa da repetência, os brasileiros levam em média cerca de 11,2 anos para concluir as oito séries do ensino obrigatório. No Nordeste, 80% dos alunos matriculados na escola fundamental têm idade superior à faixa etária correspondente à série em que estudam. O resultado é um alto nível de evasão escolar - cerca de 4% no ensino fundamental. Desestimuladas pelos maus resultados e pressionadas pelos pais a ajudar no sustento da casa, muitas crianças abandonam definitivamente os estudos. Sempre se jogou sobre as costas dos alunos a culpa pelo fracasso escolar. Quando tantas crianças abandonam os estudos, é claro que os verdadeiros responsáveis estão em outro lugar. Os dados do último censo escolar revelaram, porém, uma tendência alentadora. Apesar de alto, o número de alunos que deixam a escola está em queda. Isso pode ser atestado pelo crescimento das matrículas no ensino médio (o antigo segundo grau), que aumentaram 52,2% entre 1991 e 1996.
O governo, empresários e estudiosos do problema estão convencidos de que as oito séries do nível fundamental constituem a melhor base para qualquer aspirante a uma vaga no mercado de trabalho. O que afinal aconteceu para que houvesse essa guinada tão radical? O fato é que num mundo de fronteiras abertas, onde o acesso ao capital e aos fatores de produção foram internacionalizados, o que faz a diferença atualmente é a qualidade da mão-de-obra nacional. Na dúvida entre investir neste ou naquele país, ganhará o que for capaz de oferecer uma força de trabalho mais bem preparada. É isso o que os especialistas chamam de worker effect, o que, em última instância, garantirá a competitividade internacional dos produtos a ser produzidos.
Os índices de produtividade do trabalhador brasileiro tiveram um salto espetacular desde o início do Plano Real, mas ainda estão muito longe daqueles que vêm sendo obtidos pelos seus pares na Coréia, onde a escola fundamental foi universalizada e a educação é cultuada como um bem valioso. Por isso, nada soa mais ultrapassado hoje do que aquela qualificação excludente do passado, em que os filhos das classes menos favorecidas substituíam a formação acadêmica pelos cursos profissionalizantes oferecidos no local de trabalho. Tal modelo ajudou a perpetuar uma casta de brasileiros de segunda categoria, mantendo, geração após geração, as desigualdades sociais de seus grupos. Enquanto isso, o ensino acadêmico era garantido aos filhos das classes médias e mais abastadas, que acabavam ficando com as vagas nas universidades e, mais tarde, com os cargos de comando nas empresas e fora delas.
Não se pode menosprezar o fato de que, além de contribuir ara formar continentes de mão-de-obra capazes de atrair para o parque industrial brasileiro as chamadas indústrias de ponta, a educação também terá seu papel na consolidação do mercado brasileiro. Como afirma o economista carioca Sérgio Werlang, cada ano adicional de estudo acrescenta ao trabalhador brasileiro um aumento anual de renda em tomo de 16%. Mais renda, mais consumo.
Quanto maior a base acadêmica, maior a chance de um trabalhador integrar-se às novas exigências do trabalho e expandir suas habilidades, mediante cursos de reciclagem constantes. É assim que irá garantir sua empregabilidade, uma dessas palavras feias que os consultores e técnicos inventam de vez em quando, mas que significa apenas a capacidade do trabalhador de tornar seus préstimos úteis para alguma empresa. "A principal política de emprego é a política educacional", diz o ministro do Trabalho, Paulo Paiva.
Dados do Ministério do Trabalho indicam que o contingente de pessoas analfabetas ou subescolarizadas empregadas hoje nos diversos setores da economia é superior a 10 milhões. Uma série de iniciativas está em curso para enfrentar o problema. A Confederação Nacional da Indústria, CNI, através do Sesi, anunciou recentemente uma meta ambiciosa: alfabetizar e elevar a escolaridade de 3,6 milhões de trabalhadores acima de 14 anos, empregados na indústria, no setor de comunicações e na pesca. O programa pretende fazer com que 2,6 milhões de trabalhadores concluam a 8ª série do ensino fundamental num período de seis anos.
Empresas como a Black & Decker, Volkswagen, Honda e Natura estão investindo na educação básica de seus funcionários. Muitas empresas, como a Natura, só admitem funcionários que tenham o segundo grau completo. A política começou a ser implantada há cerca de três anos, quando muitos deles, com baixa escolaridade, começaram a ter dificuldades para absorver os novos conceitos de qualidade total que estavam sendo introduzidos na empresa. O recurso foi firmar um convênio com uma escola pública da vizinhança para que voltassem a estudar. Hoje, 78% dos funcionários da Natura já atendem àquela exigência. "Precisamos de pessoas que saibam tirar conteúdo de um texto e entendam nossos treinamentos operacionais", afirma o diretor de recursos humanos e qualidade total da Natura, Femando Porchat.
Para fazer essa revolução do giz, - caderno e compasso (sem falar da calculadora eletrônica e do computador) é preciso que a sociedade se mobilize. Há muito se sabe que um dos nós da educação brasileira é a prioridade dada pelo governo ao ensino universitário em detrimento do ensino básico. A questão sobre se a universidade pública deve ou não ser paga é um vespeiro no qual o governo não pretende meter a mão, ao menos por enquanto. "Esse não é um tema central neste momento", diz o ministro Paulo Renato. Para ele, as atenções devem ser centradas na reforma universitária que se encontra em discussão no Congresso. Sua esperança é que por meio dessa reforma, que pretende dar maior autonomia administrativa e financeira às universidades federais, elas possam melhorar seu desempenho, inclusive baixando os custos - hoje tão altos - por aluno matriculado.
O outro nó é a altíssima taxa de repetência, que atinge cerca de 30% dos alunos matriculados no ensino fundamental. O resultado é uma massa de estudantes com auto-estima baixa e desmotivados, que acabam abandonando para sempre os bancos escolares. Os números da evasão escolar são espantosos. De cada grupo de 100 alunos matriculados no ensino fundamental, apenas 35 concluem a 8ª série. O que o governo está fazendo para solucionar o problema da repetência? "Estamos centrando nossos esforços na melhoria da qualidade do ensino", diz o ministro Paulo Renato.
Uma série de ações está em curso. A principal delas foi a promulgação, no ano passado, da Emenda Constitucional n.º 14, que estabelece o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério. A partir de 1998, 60% dos recursos que estados e municípios têm de reservar, obrigatoriamente, para a educação, vão ser canalizados para o ensino fundamental. Esses recursos serão redistribuídos aos municípios e estados de acordo com o número de alunos matriculados nas respectivas redes. Isso significa que, para ter acesso às verbas, prefeitos e governadores precisarão investir nas escolas da 111 à 8a série. O investimento em cada aluno será de 300 dólares por ano, o mesmo valor do salário mínimo que passará a ser pago aos professores de todo o país por 20 horas de aula semanais. Começa-se a corrigir, assim, a vexatória situação que faz muitos professores, em algumas partes do país, receberem salários de 30 reais por mês.
Para melhorar a qualificação dos mestres, o governo lançou no ano passado o programa TV Escola. Cerca de 45 000 escolas do país já contam com equipamento para recepção e gravação dos cursos de aperfeiçoamento oferecidos aos professores. A intenção do governo é que, em cinco anos, todos eles tenham pelo menos o segundo grau completo. Hoje, apenas 47% deles estão nessa situação. Também no ano passado foi criado o programa de Aceleração de Aprendizagem, voltado para alunos com mais de dois anos de repetência. Lançado inicialmente nos estados de Minas Gerais, do Maranhão e de São Paulo, a iniciativa tem colhido bons resultados. O Ceará é outro estado que tem priorizado o combate à repetência e à evasão escolares. Ali, agentes comunitários visitam as áreas mais pobres do estado para convencer os pais a mandarem seus filhos novamente para a escola Essa e outras iniciativas fizeram com que a matrícula nas escolas cearenses do ensino fundamental tivesse um aumento de 25% do ano passado para cá.
Há várias outras iniciativas adotadas pelo governo federal para melhorar o nível de ensino. O MEC implantou, por exemplo, um sistema de avaliação do livro didático, para orientar a escolha dos professores. Este ano foram distribuídos, no início e não no meio do ano letivo, como acontecia tradicionalmente, um total de 110 milhões de livros didáticos, o que significa um aumento de 83% sobre 1996.
Outra novidade diz respeito aos novos parâmetros curriculares que estão sendo estabelecidos para o ensino fundamental. Já a partir do próximo ano, as disciplinas clássicas, como português, ciências sociais e matemática, vão ser permeadas, nas escolas da 14 à 4& série, por temas como saúde, pluralidade cultural, ética da cidadania e meio ambiente. No próximo mês, o presidente Femando Henrique Cardoso vai divulgar as bases do programa Nenhuma Criança fora da Escola, que tem por fim apoiar os estados e os municípios a expandirem o número de suas matrículas e eliminar o déficit no atendimento já a partir do ano letivo de 1998.
Em meio a todos os dados desalentadores da educação brasileira, uma boa notícia. De 1991 a 1995, o número de alunos que concluíram o ensino fundamental cresceu 61,9%. No mesmo período, o número daqueles que terminaram o ensino médio foi 45,9% maior.
Tudo isso mostra que alguma coisa está sendo feita para desatar o nó do ensino no Brasil. Não se trata evidentemente, de uma tarefa que se possa executar da noite para o dia, mas é preciso correr. Outros países, com sistemas educacionais mais funcionais do que o nosso, estão discutindo os seus erros e procurando corrigi-los, sob pena de serem punidos mais adiante. É possível, sim, resolver o problema da educação no Brasil. Talvez seja uma tarefa para apenas uma geração. Convém desmitificar as dificuldades à frente. Houve um tempo em que quase chegamos a perder a confiança em nossa capacidade de ter uma moeda estável. Hoje, a inflação está aí com índices de apenas um dígito - uma miragem não faz tanto tempo assim. Se toda a sociedade quiser, não vai ser diferente com a educação. Só com uma profunda reforma do ensino, que resgate a cidadania de sua enorme parcela de excluídos, é que o Brasil vai poder, finalmente, deixar a segunda divisão dos países e marcar, quem sabe, um gol de placa no século XXI.