segunda-feira, 30 de maio de 2016

A cultura do estupro é a expressão mais radical da cultura da superioridade

Há quase uma semana, falamos intensamente sobre a “cultura do estupro”, que contribuiu para uma brutalidade cometida contra uma menina de 16 anos na cidade do Rio de Janeiro. Essa mesma cultura deixou os criminosos que a estupraram coletivamente confortáveis o bastante para publicarem fotos e um vídeo do crime em uma rede social. Essa cultura também permitiu que amigos desses indivíduos ridicularizassem a vítima ao comentarem as imagens. Foi necessário que essas imagens grotescas parassem na internet para que um movimento de revolta ocorresse, levando à discussão da “cultura do estupro”. Mas o que significa, na realidade, essa cultura do estupro? A maioria dos comentários, textos, artigos e postagens em mídias sociais fala sobre uma cultura que pune as vítimas enquanto os perpetradores são isentados ou desculpados por diferentes motivos. Existe, contudo, muita coisa por trás da cultura do estupro. Discutimos sobre a necessidade de educar as meninas para que não “provoquem” um estupro e de educar os meninos para não estuprarem. Ninguém ensina meninos a estuprar, mas os ensinamos a sentirem-se superiores. Mesmo que involuntariamente, as famílias e a sociedade mostram diariamente aos meninos e homens que eles estão em vantagem na vida. Que são superiores. Os atos cotidianos são tão pequenos e sutis que é difícil perceber como contribuímos para a cultura da superioridade – e, finalmente, do estupro. Tudo começa em casa. No café da manhã, no almoço, no jantar, ou no churrasco, com aquela piadinha machista tão sem maldade do papai, do titio, dos amigos da família. E aquela clássica frase no trânsito: tinha que ser mulher! Quem não ouviu? Não é grosseiro, não é maldoso. É sutil, mas existe. E em muitas famílias (quiçá na maioria) ocorre com frequência. Na televisão, em quase toda a programação dos canais abertos temos referência à mulher como objeto: comercial de cerveja, novelas com os clássicos estereótipos, programas de auditórios (a Banheira do Gugu e as dançarinas do Faustão são exemplos famosos), entre outros. Também se tem a reprodução do ideal da mulher: nos comerciais de produtos de limpeza ou cozinha, cuidando das crianças, sendo bela, recatada e do lar. Enquanto crescemos, ouvimos nossos pais censurarem nossas roupas e nossos corpos, mesmo que não de forma bruta. Um “zelo”, um cuidado de quem não quer ver sua filha ser vítima de violência. Para os meninos, a preocupação é muito menor. Antes de saírem de casa, as meninas ouvem diversos conselhos: cuidado com quem você conversa, preste atenção na hora de comprar bebida para ver se não colocaram nada dentro, não fique sozinha em lugares isolados, não pegue táxi sem ser da cooperativa, etc. Em países como Índia e China, por exemplo, vai-se além. Em ambos os países, é proibido saber o sexo do bebê antes do nascimento para evitar abortos de meninas. Na Índia, há inúmeros casos de desnutrição entres meninas, uma vez que famílias de menor renda tendem a priorizar a alimentação de meninos. Os meninos crescem nesse mundo. No Brasil, eles veem e ouvem tudo isso a vida inteira – da piada aos conselhos, dos comerciais aos programas de TV. E é inevitável perceberem que têm menos restrições e menos dificuldades. Nasce, assim, um sentimento de superioridade. Claro que muitos não veem essas vantagens e privilégios como superioridade inerente, mas sim como uma construção injusta da sociedade. Há outros que se entendem superiores e, embora não pratiquem violência contra mulheres, não contestam quando outros (conhecidos ou não) cometem tais crimes. E sempre existirão aqueles que levam a cultura da superioridade ao extremo. E esse extremo chama-se violência, estupro. Ninguém educa um filho para ser estuprador, mas criamos meninos imbuídos de um sentimento de superioridade. Não atentamos para aquilo que cotidianamente pode transforma-los em pessoas que praticam ou compactuam com a violência contra a mulher. Esses detalhes do dia a dia também reforçam nosso hábito de culpar a vítima: a saia curta, o batom vermelho, o decote. “Mas ela estava sozinha”, “estava bêbada”, “estava drogada”, “estava no lugar errado”, “estava dando em cima do cara”, “estava pedindo”. Não seria desumano usar esses mesmos argumentos para “justificar” o porquê de um homem ter sido estuprado? Porque estava bêbado, drogado, sozinho, ou se estivesse dando em cima de uma mulher, etc. O estupro é a expressão mais radical e mais dramática desse sentimento de superioridade. Será sempre muito complexo combater o estupro enquanto homens se julgarem superiores às mulheres. A cultura do estupro seguirá firme enquanto acharmos que falar mal de machismo é “mimimi”. Enquanto continuarmos tratando o respeito à mulher como uma luta feminista e não da humanidade. Enquanto acharmos que igualdade de gênero se refere exclusivamente aos direitos das mulheres e não aos direitos de todos nós. Este é um texto especial da editora Vivian Alt em decorrência do recente caso de uma jovem violentada por um grupo de homens na cidade do Rio de Janeiro. Embora seja um tema fora do perfil editorial do site, o Politike sente a necessidade de debater o assunto com seus leitores.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

SALÁRIO DOS PROFESSORES NA BRASIL É UM DOS PIORES DO MUNDO


A CRISE EDUCACIONAL BRASILEIRA

Não é difícil encontrar-se um relativo consenso de opinião a respeito da gravidade da situação educacional brasileira. A divergência surge na análise das causas dessa situação e na indicação da terapêutica mais aconselhável.
Vamos tentar aqui encarar essa situação de pontos de vista mais recuados ou buscar novos ângulos de apreciação, com a esperança de que novas perspectivas, ou visão mais extensa dos fenômenos, nos desfaçam as divergências e surgiram diretrizes comuns ao nosso esfôrço de recuperação.
Antes de tudo, cumpre definir a educação como função normal da vida social e caracterizar os motivos pelos quais, além dessa educação, buscamos dar aos indivíduos educação formal e escolar.
A educação, como função social, é uma decorrência da vida em comunidade e participa do nível e da qualidade da própria vida em comum. É por êste modo que adquirimos a língua, a religião e os nossos hábitos fundamentais. É por êste modo que somos brasileiros, que somos de nossa classe, que somos afinal o que somos. A família, a classe, a religião são instituições educativas, transmissoras dos traços fundamentais de nossa cultura, e a elas ainda se juntam a vida social em geral e os grupos de trabalho e de recreio.
A escola, pròpriamente dita, sòmente aparece em estágio avançado e complexo da cultura, quando esta, já consciente, adquire as técnicas intelectuais da leitura e da escrita e o saber pelo livro, cuja transmissão não se pode efetuar senão sistemàticamente. A escola surge, pois, assim, como uma instituição já altamente especializada proposta à formação de intelectuais, de letrados, de eruditos, de homens de saber ou de arte.
Podemos dizer, numa simplificação um tanto ousada, mas em rigor certa, que até o século dezoito, não teve a nossa civilização outra escola senão essa, destinada a manter e desenvolver a cultura intelectual e artística da humanidade, para tanto preparando um pequeno grupo de especialistas do saber e das profissões de base científica e técnica. Tal escola não visava formar o cidadão, não visava formar o caráter, não visava formar o trabalhador, mas formar o intelectual, o profissional das grandes profissões sacerdotais e liberais, o magistério superior, manter, enfim, a cultura intelectual, especializada, da comunidade, de certo modo distinta da cultura geral do povo e, sobretudo, distinta e independente de sua cultura econômica e de produção.
Um dos resultados, porém, dessa cultura intelectual foi a ciência, cuja aplicação crescente à vida veio revolucionar os métodos de trabalho e de vida do homem. Começa, então, a necessidade de uma educação escolar mais generalizada, destinada a dar a todos aquêle treino sem o qual não lhes seria possível viver ou trabalhar com adequação ou integração nos novos níveis a que atingiria a sociedade.
Essa nova escola, já agora para todos ou, pelo menos, para muitos, não tinha por objetivo preparar os e especialistas das letras, das ciências e das artes, mas o homem comum, para o trabalho ou o ofício, tornado êste, pelo desenvolvimento da civilização, suficientemente técnico para exigir também treinamento escolar especial. Ora, para tal modalidade de escola não dispunha a sociedade de nenhuma tradição. Não havia, com efeito, senão as escolas altamente especializadas de treino e preparo de um grupo reduzido de intelectuais, letrados, cientistas e artistas. E a nova escola teve assim, que utilizar a tradição e os métodos das antigas escolas. Daí o seu caráter intelectual e livresco, como se a escola comum nada mais fôsse que uma expansão da escola tradicional, uma iniciação de tôda a gente à carreira de letras, de ciências ou de artes, fruição até então de poucos.
Sòmente nos fins do século dezenove, começa-se, no mundo, a rever e transformar essa situação, com o aparecimento da chamada educação nova, do trabalho, ativa ou progressiva, que mais não é do que a percepção de que a formação do homem comum ou, melhor, a formação de todos os homens não podia obedecer aos mesmos métodos de formação de uma classe especial de estudiosos, eruditos, intelectuais ou cientistas. A escola chamada tradicional, com a sua organização, o seu currículo, os seus métodos, sòmente teria eficiência para o tipo muito especial de alunos, a que sempre servira, isto é, aquêles muito capazes e que se destinassem a uma vida de estudos literários ou científicos. Ora, nenhuma nação pode pretender formar todos os seus cidadãos para intelectuais. E como nenhuma escola também seria capaz disso, a escola comum, intelectualista e livresca, se fêz uma instituição mais ou menos inútil para a maioria dos seus alunos.
A reforma dessa escola está em plena marcha em todo o mundo. Dia a dia, as escolas primárias e secundárias se fazem mais ativas e práticas e as escolas superiores mais técnicas e especializadas. Cada escola passa a procurar servir mais diretamente aos seus fins, independente de qualquer preconceito, social ou intelectual. Êsse, o sentido da renovação educacional do nosso século.
As escolas passaram a ter dois objetivos: a formação geral e comum de todos os cidadãos e a formação dos quadros de trabalhadores especializados e de especialistas de tôda espécie exigidos pela sociedade moderna.
A formação comum dos homens não é formação pròpriamente intelectual, embora exija certas técnicas intelectuais primárias, como a leitura, a escrita e a aritmética, e certo mínimo de informação e conhecimento. Precìpuamente, é uma formação prática, destinada a dar, ao cidadão, em uma sociedade complexa e com o trabalho extremamente dividido, aquêle conjunto de hábitos e atitudes indispensáveis à vida em comum. A escola, neste nível, longe de poder ser modelada segundo os antigos padrões acadêmicos, deve buscar os seus moldes na própria vida em comunidade, fazendo-se ela própria uma comunidade em miniatura, onde o aluno viva e aprenda as artes e relações da sociedade compósita e difícil de que vai ùtilmente participar. Para essa nova, ativa, vital e progressiva educação, sòmente agora vem o mundo descobrindo e aplicando as suas técnicas e os seus métodos.
Depois da escola comum, eminentemente formadora de hábitos sociais e mentais, passa o aluno, já adolescente, a escolas especializadas, em que se habilita para a imensa variedade de trabalhos, que oferece a sociedade contemporânea, inclusive o trabalho do estudo e da pesquisa e das grandes profissões chamadas liberais, que, embora tremendamente importantes, constituem apenas um setor da vida moderna. Em tais escolas especializadas, também hoje muito transformadas, é que se pode encontrar e se encontra ainda algo da velha tradição acadêmica e escolástica.
Essa evolução escolar, com anacronismo inevitável, também se vem realizando entre nós. Estamos, talvez possamos dizer, no período correspondente ao da segunda metade do século dezenove na Europa. A opinião pública tomou-se de certo entusiasmo pela educação e está a exigir escolas para todos. Há, por tôda a parte, certo orgulho nos aspectos quantitativos da educação e a pressão se faz tão intensa, que até a limitação de matrícula se torna difícil senão impossível.
Não poderemos, entretanto, analisar com justeza a situação escolar brasileira presente, sem antes considerar que o nosso esforço de civilização constituiu um esfôrço de transplantação, para o nosso meio, das tradições e instituições européias, entre as quais as tradições e instituições escolares. E a transplantação não se fêz sem deformações graves, por vêzes fatais. Como a escola foi e será, talvez, a instituição de mais difícil transplantação, por isto que pressupõe a existência da cultura especializada que busca conservar e transmitir, nenhuma outra nos poderá melhor esclarecer sôbre o modo por que se vem, entre nós, operando a transplantação da civilização ocidental para os trópicos e para uma sociedade culturalmente mista.
O defeito original, mais profundo e permanente, de nosso esfôrço empírico de transplantação de padrões europeus para o Brasil, esteve sempre na tendência de suprir as deficiências da realidade por uma declaração legal de equivalência ou validade dos seus resultados. Com os olhos voltados para um sistema de valores europeus, quando os não podíamos atingir, buscávamos, numa compensação natural, conseguir o reconhecimento, por ato oficial, da situação existente como idêntica à ambicionada. Aplicávamos o princípio até a questões de raça, como o comprovam os decretos de branquidade, dos tempos coloniais.
Acostumamo-nos, assim, a viver em dois planos, o real, com as suas particularidades e originalidades, e o oficial com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. Enquanto fomos colônia, tal duplicidade seria natural e até explicável, à luz dos resultados que daí advinham para o prestígio nativo, perante a sociedade metropolitana.
A independência não nos curou, porém, do velho vício. Continuamos a ser, com a autonomia, uma nação de dupla personalidade, a oficial e a real. A lei e o govêrno não eram para nós instituições resultantes de condições concretas e limitadas, contingentes, mas algo como um poder mágico, capaz de transformar as coisas por fiats milagrosos.
A divisão aceita tàcitamente ou nem sequer discutida entre uma diminuta classe dominante e um grande povo analfabeto e deseducado, segundo os padrões convencionais, permitia essa dualidade que nos dava o aspecto de teatro, personificando alguns um elenco "representativo", no palco da nação supostamente civilizada, e estendendo-se, pelo imenso território nacional, silenciosa e bestificada, a grande platéia.
Nas últimas décadas, porém, houve desenvolvimentos, camadas sociais se misturaram, parte da massa popular se incorporou à nação, e já não podemos apenas "representar" de país civilizado. Temos de serum país civilizado. As instituições "transplantadas" não se podem conservar como instituições simbólicas e aparentes, mas têm de se fazer efetivas, extensas e eficazes, sob pena de não atenderem às imposições do real desenvolvimento brasileiro.
É a conjuntura em que nos encontramos. O progredir ou perecer de Euclides da Cunha está hoje superado. Progredimos ... e pereceremos se não nos organizarmos em condições de poder suportar e dirigir o próprio progresso. E a organização de que aqui falamos não é a de nenhum plano racionalizante, mas de adaptação de nossas instituições à realidade nacional, para que elas não sejam fictícias nem inadequadas, mas os instrumentos eficazes da solução de nossos realíssimos problemas. Devemos reexaminá-las tôdas, à luz do nosso conhecimento atual das condições brasileiras, a fim de conduzi-las para melhor atenderem aos seus objetivos, na sociedade brasileira, unificada em todo o país. Temos de sair de um estado de ficção institucional para o da realidade institucional, integrando a nação real em suas instituições assim tornadas reais.
O caso da escola exemplifica e ilustra essas observações. Dentre as instituições, nenhuma, como já dissemos, oferece, ao ser transplantada, maiores perigos de se deformar ou perder mesmo a eficácia. A escola em parte já é de si ma instituição artificial e abstrata, destinada a complementar, apenas a ação de educação, muito mais extensa e profunda, que outras instituições e a própria vida ministram. Deve, portanto, não só ajustar-se, mas completar-se com as demais instituições e o meio físico e social.
Não é, pois, de admirar que por muito tempo, entre nós, não se tenha tentado senão com extrema prudência a sua transplantação. O fato de os portuguêses sempre se terem recusado a transplantar a universidade poder-se-á, talvez, admitir, hoje, como uma prova até de sabedoria, a despeito de todos os motivos de dominação política, que lhes ditaram efetivamente a recusa.
O que é fato é que chegamos à independência sem imprensa e sem escolas superiores, com a maior parte de nossa elite formada na Europa, o que continuou a acontecer durante boa parte do império. Como que se percebia obscuramente o perigo de uma transplantação de instituições delicadas e complexas como as da educação, em seus níveis mais altos pelo risco de quebra de padrões. . .
Durante tôda a monarquia, a expansão do sistema escolar se fêz com inacreditável lentidão. A consciência dos padrões europeus era muito viva, para que se pensasse poder abrir escolas como se abrem lojas ou armazéns. Por outro lado, o desenvolvimento do país era tão lento e as condições até a abolição, de certo modo, tão estáveis, que a nação não se ressentiu demasiadamente da escassez de sua armadura educacional.
Com a abolição e a república, entramos, porém, no período de mudanças sociais, que a escola teria de acompanhar. O modesto equilíbrio dos períodos monárquicos, obtido em grande parte às custas da lentidão do nosso progresso e do número reduzido de escolas, em que se buscava conservar a todo transe os melhores padrões, rompe-se definitivamente, e começamos a expandir o sistema escolar sem maior reflexão nem prudência.
O fenômeno a registrar era sempre êste: a escola, como instituição de cultura, não era realmente exigida e imposta pelo meio brasileiro; representava, antes, um esfôrço para elevá-lo ao nível de outros meios, de que desejávamos copiar os padrões. Assim, ao ser criada, apresentava algo de semelhante ao modêlo que se queria transplantar, mas, logo depois, entrava a se deformar e a se reduzir às condições do ambiente. A luta para mantê-la no nível inicial, permanente e incessante, era vencida pela tendência inevitável para se deteriorar.
Os analistas de nossas escolas sempre assinalaram um impasse: como construir um sistema escolar para uma nação, cuja aspiração de progresso o requer, mas cuja situação real não o determina? Precisávamos de educação. Mas, as condições existentes não nos haviam preparado para a espécie de educação de que dispúnhamos, isto é, copiada de modelos alienígenas, sobretudo europeus. A escola, assim, não podia fugir a certo aspecto irreal, se não absurdo, no melhor dos casos, e nos demais, paternalista, assistencial e salvador.
A nossa velha tendência nativa para a revalidação, para a transformação da realidade por declaração oficial, exercida a princípio contra a metrópole, para forçá-la a reconhecer-nos virtudes ou qualidades, passou a se exercer contra nós mesmos, ou pôr uns contra os outros.
O legislador, possuído, também êle, do velho vício metropolitano, entrou a fixar condições e padrões para a educação, tomado do susto de que os nativos, entregues a si mesmos, fizessem da escola algo de reprovável. Fora dessas condições, não haveria educação. O govêrno federal tomou, assim, rigorosamente, as antigas funções da metrópole. E os colonizados, como todos os bons colonizados, entraram a lograr os colonizadores, obtendo o "reconhecimento" para os seus colégios, fôssem quais fôssem as suas deficiências, mediante o cumprimento formal dos prazos e demais exigências estabelecidas.
Está claro que nada disso se poderia dar se a educação fôsse um processo de preparação real para a vida, pois, então, de nada valeria burlá-lo. Mas, como a escola se fêz, muito mais que preparação, um processo de validação, pelo qual nos assegurávamos de um título legal de educado, com tôdas as vantagens daí decorrentes, a simulação se tomou não sòmente possível mas até frutuosa.
Tratava-se, na realidade de uma transplantação a que faltavam as condições históricas e sociais, que nutriam e justificavam, nos demais países, de onde as copiávamos, a sua existência e o seu florescimento.
As alternativas, então, haviam de ser o fenecimento, no caso das escolas de tipo profissional, ou a deformação, no caso das escolas de cultura geral. Como as condições sociais do país não exigiam, em rigor, tais escolas, estas últimas se fizeram formais e decorativas e aquelas ficaram abandonadas e vazias.
A justeza dessa observação se comprova, mesmo nos casos de êxito da escola brasileira. Vemos, assim, as escolas chamadas profissionais lograrem certo sucesso em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde as condições sociais e econômicas as recomendavam, e decair nas demais zonas do país, que não haviam chegado ao relativo progresso industrial daqueles Estados. Por outro lado, os três tipos de escolas superiores profissionais - de medicina, engenharia e direito - por isto mesmo respondiam a necessidades reais, também lograram um coeficiente razoável de êxito e eficácia.
Os demais tipos de escola não conseguiram vingar nem criar tradições, deixando o país, na hora que vivemos de expansão e desenvolvimento, sem as diretrizes indispensáveis para o seu progresso educacional. Daí o crescimento atual desordenado e anárquico das escolas e a ameaça em que nos achamos de ver todo o sistema escolar brasileiro transformado em uma farsa e uma simulação.

* * *

A crise educacional brasileira é, assim, um aspecto da crise brasileira de readaptação institucional. A escola transplantada para o nosso meio sofreu deformações que a desfiguram e a levam a assumir funções não previstas nas leis que a buscam disciplinar, impondo-se-nos um exame da situação à luz dessa realidade e não das aparências legais, para descobrirmos as causas e os remédios de sua crise.
Recordamos que, até pouco tempo atrás, a educação escolar era voluntária e destinada àqueles que dispusessem de lazer para recebê-la. Os educados pela escola constituíam uma elite social. A classe dominante é que educava os seus filhos, porque dispunha de recursos para que pudessem êles ficar afastados das atividades práticas e econômicas, pelo tempo necessário a essa educação escolar, que seria tanto melhor quanto mais longa.
E foi assim que a educação escolar se ligou indissolùvelmente à idéia de que era um meio de conseguir o indivíduo uma posição social de caráter dominante, conservando-a, se já a tivesse, ou adquirindo-a, caso proviesse de camada social menos privilegiada.
Note-se que as escolas, a princípio mantidas pela Igreja, se fazem depois, independentes e particulares, sob patrocínio discreto e acidental do Estado. Sòmente no século dezenove é que o Estado entra maciçamente a interferir na educação e, a princípio, apenas para oferecer um mínimo de educação escolar, considerado necessário para a nova vida em comum, complexa e progressiva da civilização industrial moderna.
Êsse mínimo, que logo se faz compulsório, não tem, entretanto, o antigo caráter de manter alto ou elevar o status social do educando, mas visa, tão sòmente, e nunca é demais repetir, dar a todos, aquele treino mínimo, considerado indispensável para a vida comum do novo cidadão no estado democrático e industrial.
Ao seu lado, continuava, porém, a existir a educação de classe, com a sua matrícula selecionada, não do ponto de vista das aptidões e capacidades, mas do ponto de vista de padrões herdados e dos recursos econômicos dos seus selecionados alunos. Na Europa e, sobretudo, na França, os dois sistemas escolares coexistiam, lado a lado, separados e estanques. A escola primária, a escola primária superior, as escolas normais e as escolas de artes e ofícios constituíam o sistema popular de educação, destinado a ensinar a trabalhar e a perpetuar o status social dos que as freqüentavam, por condições ou contingência. As classes preparatórias (primárias), o liceu, as grandes escolas profissionais e a universidade constituíam o outro sistema destinado às classes abastadas e à conservação do seu alto status social. Está claro que freqüentar tais escolas passava a ser um dos meios de participar dos privilégios dessas classes e, dêsse modo, de ascenção social.
Como o critério da matrícula, nos dois sistemas, não era o do mérito ou de mérito individual do aluno, isto é, de sua capacidade e suas aptidões, mas o das condições sociais, ou econômicas, herdadas ou ocasionalmente existentes, dos pais, a injustiça era flagrante, concorrendo o sistema educacional para a perpetuação da divisão das classes, como ficara històricamente estabelecida. E essa injustiça, em choque com as aspirações democráticas, é que dá lugar à grande luta dos fins do século passado e dos começos dêste pela integração dos dois sistemas em um único, com igualdade de oportunidades para todos.
Desejo, porém, aqui, não tanto acentuar a referida luta, quanto examinar os efeitos, sôbre as escolas chamadas secundárias e as superiores de que as primeiras eram os degraus, da matrícula por simples motivos econômicos e não em virtude da capacidade e aptidão dos alunos.
A longa associação da educação escolar com as classes mais abastadas da sociedade determinou que, só em mínima parte, a escola se fizesse realmente selecionadora de valores. Forçada a receber todos os alunos, cujos pais estivessem em condições de arcar com os ônus de uma educação prolongada dos filhos, independente da sua capacidade individual, a escola desenvolveu uma filosofia de educação, que qualificaríamos de extremamente curiosa, se a ela não estivéssemos tão habituados. Tal filosofia era a de que quanto mais inúteis fôssem os estudos escolares, mais formadores seriam êles da chamada elite que às escolas fôra confiada. Não se sabia o que seus alunos iriam fazer, salvo que deveriam continuar a pertencer às classes mais ou menos abastadas a que pertenciam. Logo, se se devotassem os alunos a estudos, inúteis em si mesmos, mas reputadamente formadores da mente, deveriam, depois, ficar aptos a fazer qualquer cousa que tivessem de fazer, na sua função de componentes do chamado escol social...
E assim se afastou da escola qualquer premência do fator "eficiência", chegando-se a considerar tudo que se pudesse chamar de "prático" ou "utilitário" como de pouco educativo. A escola "acadêmica", isto é, verdadeiramente formadora do espírito e da inteligência, passou a ser algo de vago, senão de misterioso, educando por uma série de exercícios, reputados de ginástica do espírito, capazes de produzir atletas - de todos os pesos, digamos de passagem - do intelecto ou da sensibilidade. Mas, por isto mesmo que buscava resultados tão indiretos e tão elusivos, não podia se ater a critérios severos de eficiência. Os seus resultados só viriam a ser conhecidos mais tarde, na vida, quando os seus alunos, vinte ou trinta anos depois, vitoriosos em suas carreiras, por motivos absolutamente diversos, apontassem para o latim distante ou os incríveis exercícios escolares e dissessem que tudo deviam àquela escola, aparentemente tão absurda e, no entanto, tão miraculosa!
Estou buscando caracterizar a escola tradicional das classes altas da sociedade, nos casos extremos, para poder explicar o espírito de irrealidade e, por conseguinte, a complacência do seu auto-julgamento e a sua falência em funcionar como um aparelho realmente seletivo de valores, antes, pelo contrário, operando como uma perpetuadora das injustiças sociais.
Mas, ao lado do anacronismo, que representaria tal escola, as fôrças sociais, que haviam compelido o Estado a criar a educação mínima compulsória e as escolas pós-primárias de educação prática e utilitária, e a renovação científica do preparo para as profissões liberais e técnicas, estavam transformando a educação escolar em um processo de preparo dos homens (de todos os homens) para a sua redistribuição nas múltiplas e diversas ocupações de uma sociedade industrial e complexa. Educação assim, com tais propósitos definidos, é claro que não visava nenhuma pseudo-formação do espírito, mas algo de concreto e objetivo: um treinamento especial para uma ocupação especial. O pêndulo já aí inclinava-se para o outro extremo, criando a tendência para o regime de mero adestramento, que empobreceu tantas dessas escolas.
O importante a notar, em nossa análise, é, porém, que essa educação não objetivava nenhuma específica classificação social, fôsse a de manter ou de fazer ascender o aluno a determinada camada social, mas, simplesmente, ensinar a trabalhar e dar um "meio de vida" ao aluno. Como tal, desde o princípio, não gozou de prestígio social, fazendo-se por tôda a parte, a escola para os que não tinham meios de seguir a outra, a escola acadêmica, a qual - ela sim - classificava socialmente e permitia a ascenção às chamadas profissões liberais.
A fusão ou integração dos dois sistemas escolares - o do povo e o das elites - veio se realizando em todos os países, por diferentes processos. Na América do Norte, pela organização de um único sistema público de educação, com extrema flexibilidade de programa e a livre transferência entre êles. Na Inglaterra, pela "escada contínua" de educação, pela qual se permite que o aluno, seja lá qual fôr a escola que freqüente, possa ascender a todos os graus e variedades de ensino. Na França, pela transferibilidade do aluno de um sistema para outro e por um sistema de bôlsas de estudo favorecendo os alunos desprovidos de recursos para a matrícula e a freqüência das escolas seletivas.
Além dessa inter-fusão dos alunos, pela qual se quebrou o dualismo do sistema, do ponto de vista das classes que abasteciam os dois tipos diversos de escolas, processou-se uma verdadeira revisão de métodos e programas, graças à qual as escolas chamadas populares se vêm fazendo, cada vez mais, escolas de cultura geral, sem perda dos seus aspectos práticos, e as escolas chamadas "clássicas" ou "acadêmicas" se vêm fazendo, cada vez mais, escolas de cultura moderna, preocupadas com os problemas de seu tempo, sem perda dos seus aspectos culturais, hoje mais inteligentemente compreendidos.
Em todos os países democráticos, os sistemas escolares tendem a constituir um único sistema de educação, para tôdas as classes, ou, melhor, para uma sociedade verdadeiramente democrática, isto é, sem classes, em que todos os cidadãos tenham oportunidades iguais para se educarem e se redistribuírem, depois, pelas ocupações e profissões, de acordo com a sua capacidade e as suas aptidões, demonstradas e confirmadas.
No novo sistema educacional, que agora encaramos, a classificação social posterior do aluno é um resultado da redistribuição operada pelo sistema e não um objetivo predeterminadamente visado por certas escolas para um grupo privilegiado de alunos de recursos. O aluno terá as oportunidades que sua capacidade determinar.
Está claro que nenhum país atingiu ainda essa perfeição. Até agora, o que se tem feito é aumentar aquela educação mínima oferecida pelo Estado, até os 16 e os 18 ou 19 anos, e prover um sistema de bôlsas para os estudos superiores, a fim de facilitar o ingresso dos capazes sem recursos, - considerando-se, como realidade iniludível, que o ensino superior, de modo geral, ou depende dos recursos da família, ou impõe sacrifícios pessoais consideráveis.
Entre nós, porém, a evolução de que esboçamos as linhas mestras sofreu desvios e agravantes de tôda ordem. Antes do mais, sempre tivemos um sistema dual, embora sem a nitidez do paradigma francês. A escola primária, a escola normal e as chamadas profissionais e agrícolas constituiam um dos sistemas, e a escola secundária, as escolas superiores e, por último, a universidade, o segundo sistema. Neste último, dominava a filosofia educacional dos estudos "desinteressados" ou inúteis em si mesmos, mas supostamente treinadores da mente, e no primeiro, a da formação prática e utilitária, para o magistério primário, as ocupações manuais ou os ofícios, as atividades comerciais e agrícolas.
O Estado tomou, em relação aos dois sistemas, uma atitude muito significativa. Houve, por parte do Estado, algo como uma duplicidade de comportamento.
Com efeito, se, por um lado, pagava um alto tributo de palavras e, por vêzes, até de recursos, à educação popular, promovendo o ensino primário e criando escolas normais, profissionais e agrícolas, com sacrifícios tanto mais penosos quanto menos compensadores, por outro lado, estabelecia uma legislação de privilégio para o chamado ensino secundário, propedêutico às escolas superiores, e firmava, de tal modo indireto, o prestígio incontrastável dêste ensino sôbre o popular e prático.
Se o nosso desenvolvimento social e econômico obedecesse sincronizadamente ao dos demais países considerados civilizados, o embate se daria entre os dois sistemas e o mesmo processo de fusão ou conciliação se efetivaria aqui, como se efetivou, digamos, na Europa.
Mas, o desenvolvimento do Brasil, desigual no espaço, impondo aqui um sistema de escolas, moderno e variado, permitindo ali o anarcronismo de escolas de pura e simples classificação social, e desigual no tempo, levando a nação a lidar com as suas crises de desenvolvimento quando as nações que nos fornecem os métodos de ação já de muito as superaram; êsse desenvolvimento, diversificado e retardado sòmente agora vem provocando a crise de educação, que nos cumpre resolver, se não quisermos agravar a situação seríssima em que se debate a nação com as suas escolas.
Na verdade, o que se está passando rio Brasil é um resultado daquelas mesmas fôrças sociais de democratização do ensino que operavam na Europa e na América, em fins do século dezenove e comêço dêste século, mas com efeitos funestos, porque não encontraram ou não encontram as ditas fôrças, entre nós, as duras e sólidas tradições escolares dos países já civilizados.
Se possuíssemos, em relação aos dois sistemas, verdadeiras tradições, vivas, concretizadas em escolas modelares, cada dia que passasse seria mais difícil fazer, fôsse uma autêntica escola de tipo "acadêmico" ou "superior", ou uma autêntica escola de tipo profissional ou prático. Mas, como as nossas tradições, ou se quiserem, padrões, são frágeis e sob o embate da inevitável pressão social. "democratizadora" se desfazem fàcilmente, vimos assistindo a uma expansão desordenada e irrefletida de escolas ... de tipo acadêmico, com vários ou confusos desígnios, em várias e confusas direções.
Mas, por que de tipo acadêmico e superior, e não de tipo técnico ou do chamado ensino profissional? - Não será que está aí uma das pistas para explicação da situação educacional em que se encontra o país?
Já nos referimos à duplicidade ou ambigüidade do Estado em relação à educação pública, no Brasil. O Estado (união e províncias) promove diretamente a educação chamada popular, com as escolas primárias, normais, técnicas e agrícolas e, aparentemente, se desinteressa pelo ensino secundário, para o qual só muito poucos estabelecimentos mantém. A sua política educacional seria, assim, a de promover um sistema público de educação, caracterizado por escolas populares e de trabalho. Ao mesmo tempo, porém, êste mesmo Estado legisla sôbre o ensino de modo a anular seu próprio esfôrço oficial, direto, pela educação popular, profissional e técnica. Com efeito, a legislação sôbre o ensino secundário deu-lhe ou reforçou-lhe o privilégio de conduzir ao ensino superior, emprestando-lhe, assim, uma superioridade sôbre todos os demais ramos de ensino. E depois disso, permitiu, pelo regime das equiparações, que os colégios particulares gozassem de tôdas as regalias de colégios oficiais e seus exames fôssem validos para o poder público, quanto a todos os seus efeitos ou alcance. De tal modo, sòmente o ensino secundário haveria de constituir a grande via para a educação das classes mais altas do país, ou dos que a elas pretendessem ascender. O ensino primário, o normal e o técnico-profissional ficaram como becos sem saída, para onde iriam os alunos que não pudessem freqüentar o secundário, preparatório do superior.
Tal duplicidade e incongruência legislativa deu como resultado o afluxo natural dos alunos para as escolas secundárias. O Estado julgava que, não as criando nem mantendo, poderia conter a pressão social para o acesso às mesmas. Mas, não reparou que, embora quase não as mantivesse, reconheceria, pela equiparação, as escolas particulares, quantas aparecessem. E isto era o mesmo, ou era mais do que mantê-las. E, por outro lado, também não refletiu que, dada a organização da escola secundária e, sobretudo, a sua mantida filosofia de escolas apenas para treino da mente, tal escola podia ser barata, enquanto as demais escolas - para treino das mãos, digamos, a fim de acentuar o contraste - seriam sempre caras, pois requeriam oficinas, laboratórios e aparelhagem de alto custo.
Estava, pois, aberto o caminho para a expansão escolar descompassada, a que assistimos em todo o país, nos últimos vinte anos... Uma escola secundária regulamentarmente uniforme e rígida, de caráter acadêmico e portanto fácil de criar e de fazer funcionar, bem ou mal (mais mal do que bem), com o privilégio de escola única ou de passagem única para o ensino superior (passagem naturalmente ambicionada por todos os alunos), entregue ou largada, tão privilegiada e atraente escola, à livre iniciativa particular, mediante concessão pública, facilitada sob aleatórias condições e aleatórios contrôles, rígidos apenas no papelório e quanto a êste, sob a complacência protetora de uma tôda poderosa burocracia central e centralizadora. E um sistema público de educação - a escola primária, a escola normal, o ensino técnico-profissional e agrícola sem nenhum privilégio especial, valendo pelo que conseguisse ensinar e não assegurando nenhuma vantagem, nem mesmo a de passar para outras escolas.
Claro que o sistema público de escolas, via de regra entrou em lento perecimento; enquanto a escola secundária, em sua maior parte, de propriedade privada, mas reconhecida oficialmente, com o privilégio máximo de ser a verdadeiramente estrada real da educação, o caminho para todos os caminhos, distribuindo uma educação puramente livresca, facilitada por programas oficiais e rígidos, iniciou a sua carreira triunfal, multiplicando seis vêzes a sua matrícula nos últimos vinte anos.
Operada essa expansão, melhor diríamos inflação, segue-se agora - era fatal ou óbvio - a do ensino superior.
A escola secundária propedêutica tem de se continuar na escola superior, multiplicada agora pela simples imposição da massa de alunos "deformados" pela escola secundária livresca e acadêmica. Como as escolas de ensino livresco e acadêmico, baseadas naquela pedagogia do treino da mente, mediante simples preleções e exames, não precisam para existir senão do aluno, do professor e de um local para aulas, era de prever, mas parece não foi previsto, o que aconteceu e acontece ainda. Multiplicaram-se então os ginásios e colégios. E, agora, multiplicam-se as faculdades de filosofia, de ciências econômicas, de direito e, de vez em quando, mais audaciosamente, até escolas de medicina e de engenharia. O poder público mantém o seu sistema escolar "desprestigiado": as escolas primárias, as custosíssimas escolas técnico-profissionais e agrícolas, os institutos de educação ou as escolas normais. E a iniciativa privada, pobre e sem recursos, e valendo-se até de modestíssimas subvenções oficiais, que a escoram, mantém o sistema escolar privilegiado, o de mais alto prestígio social e alta procura, das escolas secundárias e superiores, freqüentado por pobres e ricos, com as suas jóias e mensalidades, relativamente bem modestas porque de fato proporcionadas ao modestíssimo ensino que ministram.
Como se vê - e não carregamos nas tintas - o quadro é, no mínimo, algo insólito, desafiando estudos mais completos que lhe esclareçam todos os aspectos.
Mas, tudo isto se fêz possível graças a uma legislação infeliz e ambígua, pela qual o ensino particular passou a gozar do privilégio de ensino público, explorado por concessão do Estado, em franca e vitoriosa competição contra o ensino público mantido pelo Estado, e graças às facilidades de uma pedagogia obsoleta, adotada rígida, uniforme e legalmente para o ensino secundário, em franca oposição à pedagogia mais moderna das escolas públicas primárias e pós-primárias.
A educação e as suas instituições sofrem, ademais, a ação das fôrças sociais que o desenvolvimento brasileiro vem liberando. A educação de tipo acadêmico e livresco não está sendo procurada pela população brasileira, em virtude dos ensinamentos que ministra, mas pelas vantagens que oferece e pela maior facilidade dos seus estudos. De modo que nem professôres nem alunos lá estão sèriamente a buscar sequer os próprios objetivos caracterizadores da escola, o que leva a uma complacente redução dêsses mesmos objetivos à "passagem nos exames". A escola se faz intrìnsecamente ineficiente, se assim nos podemos pronunciar, pois, não é peixe nem carne, reduzindo-se a uma série de estudos disparatados e inconseqüentes, se não fôssem nocivos.

* * *

Mas, a nação não podia se limitar a êsse tipo de ensino. A educação de tipo mais eficiente ou, pelo menos, de objetivos mais diretos, visando a aprendizagem de ordem vocacional ou prática, veio, a despeito do desencorajamento legal, se desenvolvendo. E os seus alunos entraram a fazer pressão para que seus estudos fôssem igualmente reconhecidos como preparação para os cursos superiores. Esta pressão já se fêz sentir em uma legislação fragmentária, mas de sentido uniforme, que culminou na lei nº 1.821 de 12/3/1953, que reconhece todos os cursos de nível médio como degraus diretos para o ensino superior. Rompeu, assim, a pura pressão social a rigidez monolítica do ensino chamado secundário privilegiadamente preparatório do superior.
Por outro lado, a própria escola está a dar mostras da insatisfação e a lutar por melhorar e adaptar seus métodos às novas condições do tempo e da época. A revolta contra a uniformidade e rigidez do currículo, contra os programas impostos, contra os livros didáticos fracos e pobres, mas oficialmente aprovados, é manifesta e está a exigir reforma, que venha adaptar a escola secundária aos seus fins de formação do adolescente para as múltiplas ocupações da vida moderna, inclusive (mas não exclusivamente) a eventual continuação dos seus estudos em níveis posteriores de educação, universitários pròpriamente, ou não.
Existem, pois, diversas fôrças e tendências em jôgo na crise educacional vigente. Com risco de fatigar pela repetição, insistamos nas duas principais, que se contrapõem, com interações que difìcilmente podem redundar num equacionamento feliz..
De um lado, temos o desejo positivo da população por mais educação escolar e a imposição das necessidades de local e de tempo para que essa educação seja melhor, mais eficiente e variada, para as múltiplas ocupações de uma sociedade já em parte industrial e complexa. De outro, temos a nossa pobreza de recursos a buscar, por uma falsa filosofia da educação, fundada em resíduos de uma teoria de treino da mente por estudos abstratos ou livrescos, reduzir a escola a turnos excessivamente curtos e o programa a pobres e disparatados exercícios intelectuais, transformando uma e outro em puro formalismo ou farsa, que pouco diverte e não sei se a alguém ainda pode iludir.
Como resultado, temos a escola com o máximo de quatro horas diárias, a funcionar em turnos (dois e até três), tanto no nível primário quanto no secundário e até no superior. O professor acumulando, ou várias funções, ou várias escolas. E o aluno dividindo o seu tempo em estudo e abandono, na escola primária, e estudo e emprêgo nas demais escolas, embora servindo mal a ambos.
Sòmente essa redução de tempo e as condições de trabalho do professor seriam suficientes para que a nossa escola não pudesse ser eficiente. Agravam, porém, ainda mais a situação as confusões pedagógicas, as deformações dos moldes mal copiados de educação acadêmica e intelectualista, esta, aliás, servindo de explicação para o funcionamento da escola nas condições em que funciona.
Com efeito, para que a escola pudesse reduzir as suas atividades ao tempo escasso com que conta e conformar-se com o professor apressado e assoberbado que a serve, foi necessária a adoção de objetivos os mais simplificados possíveis. A escola, assim, visa tão sòmente, inculcar alguns conhecimentos teóricos ou noções simplòriamente práticas. Não forma hábitos, não disciplina relações, não edifica atitudes, não ensina técnicas e habilidades, não molda o caráter, não estimula ideais ou aspirações, não educa para conviver ou para trabalhar, não transmite sequer sumárias, mas , esclarecidas noções sôbre as nossas instituições políticas e a prática da cidadania. A escola ministra em regra conhecimentos verbais, aprendidos por meio de notas, que se decoram, para a reprodução nas provas e exames, revivendo até a apostila ou a "sebenta"!
Assim simplificada, pôde expandir-se e está ainda a expandir-se numèricamente, em todos os níveis, reduzindo o período escolar e o conteúdo do ensino a um mínimo, insuficiente não só em quantidade, como em qualidade, pois o pouco que é aprendido não o é realmente, em virtude dos métodos defeituosos de aprendizagem e as escamoteações desta mesma aprendizagem.
Premidos, pois, pela necessidade de expandir as facilidades de educação, estamos a ludibriar a sêde popular de escola com essa inflação de deficientes, más e péssimas escolas, que ameaça corromper todo o sistema educacional.
Não há para a conjuntura nenhum remédio fácil nem imediato. Temos de encarar a situação em sua totalidade e dar início a um movimento de contra-marcha na pior das tendências que apontamos, atendendo ou orientando a melhor da melhor forma possível, mobilizando esforços, recursos e cooperações as mais diversas para o mesmo fim.
Uma súmula de providências, tendo em vista meios e fins, ao nosso ver se impõe e aqui a sugerimos, como um esbôço:

Primeiro, descentralizar administrativamente o ensino, para que a tarefa se torne possível, com a distribuição das responsabilidades pela execução das medidas mais recomendáveis e recomendadas;

Segundo, mobilizar os recursos financeiros para a educação, de forma a obter dêles (de todos êles, em cooperação e conjugação) maiores resultados. Sugerimos a constituição, com as percentagens previstas na lei magna da República, de fundos de educação - federal, estaduais, e municipais; estes fundos, administrados por conselhos, organizados com autonomia financeira, administrativa e técnica e todos os poderes necessários para a aplicação dos recursos, inclusive no pagamento de empréstimos e planos de inversões; e os quadros do pessoal e do magistério locais e com tabela de vencimentos locais, permitindo, assim, a adaptação da escola às condições econômicas de cada localidade;

Terceiro, estabelecer a continuidade do sistema educacional, com a escola primária obrigatória, o ensino médio variado e flexível e o ensino especializado e superior rico e seletivo;

Quarto, prolongar o período escolar ao mínimo de seis horas diárias, tanto no primário quanto no médio, acabando com os turnos e só permitindo o ensino noturno, como escolas de continuação, para suplementação da educação;

Quinto, alterar as condições de trabalho do professor, proporcionando-lhe novas bases de remuneração, para não lhe reduzir o período de influência aos escassos minutos de aula. Tôda educação é influência de uma pessoa sôbre outra, demanda tempo, e nas condições atuais não há tempo para se exercer tão imprescindível influência;

Sexto, eliminar todos os modelos e imposições oficiais que estão a produzir efeitos opostos aos previstos, servindo até como justificativa para o mau ensino - como é o caso dos programas oficiais, dos livros didáticos aprovados e do currículo rígido e uniforme;
Sétimo, permitir que os dois primeiros anos do curso secundário se façam, complementarmente, nos bons grupos escolares, com auxílio dos melhores professôres primários e redução do número dêsses professôres a 4 ou, no máximo, 5;

Oitavo, estabelecer o exame de estado para a admissão: ao primeiro ano ginasial; ao terceiro ginasial; ao primeiro colegial e ao colégio universitário, mantido o vestibular para a entrada na universidade;

Nono, dividir o curso superior regular em dois ciclos - o básico e o profissional, autorizando nas escolas novas ou sem recursos adequados, apenas o curso básico, e exigindo o exame de estado para a entrada no curso profissional e nos de pós-graduação;

Décimo, facultar no ensino superior a constituição de cursos variados de formação, em diferentes níveis, de técnicos e profissionais médios, prevendo sempre a possibilidade de poderem os assim diplomados continuar, ulteriormente, os estudos e terminar os cursos regulares.
Tôdas essas medidas seriam acompanhadas, em sua execução, por um vasto movimento de inquérito, graças ao qual se esclarecessem devidamente os objetivos a alcançar, se revelassem as deficiências e se corrigissem os erros e os maus resultados, e por uma campanha de renovação de métodos, aperfeiçoamento dos professôres e melhoramentos dos livros didáticos, do material de ensino, dos laboratórios, dos prédios e de tudo mais que completa o universo escolar.
Para tudo, impõe-se a reforma radical das leis e do aparelhamento administrativo do ensino.

* * *

Resumindo os mais oportunos esclarecimentos, desde logo aqui acrescentamos mais algumas considerações, antes de terminar.
A nossa sugestão consiste em criarmos um sistema educacional para todo o país, em que um inteligente equilíbrio entre a liberdade de ensino e os contrôles centrais possa dar lugar à expansão escolar mais generalizada possível e do mesmo passo estimular o progresso ininterrupto das escolas assim criadas e postas sob a responsabilidade dos seus fundadores ou diretores, pela própria responsabilidade estimulados.
Valendo-nos do momento adquirido pela fôrça da opinião pública em relação a um sistema de educação, público e gratuito, e, por outro lado, reconhecendo que os nossos recursos econômicos, materiais e humanos são insuficientes para um sistema efetivo e realmente homogêneo em todo o país, julgamos que é chegada a ocasião para "municipalizar" a escola pública, entregando-a ao município, que a manterá com os recursos do Fundo Escolar Municipal, constituído pelos 20% de sua receita tributária, acrescido da quota do Estado e de possível quota federal.
Essa descentralização da administração e manutenção das escolas irá, antes de mais, ligá-las melhor à comunidade local e, dêsse modo, vitalizá-las, tornando-as responsáveis perante a comunidade e essa, por sua vez, responsável pelas suas escolas. A seguir, irá permitir, com os seus quadros locais de magistério e pessoal, o custeio desigual das escolas, adaptando-as aos recursos do seu fundo municipal.
Teremos, assim, possibilidades de proporcionar as despesas com a educação aos recursos de fato existentes, tornando possível a existência de escolas com diversidade de custeio e manutenção. O princípio da aplicação dos recursos deverá basear-se na população escolarizável, isto é, a população em idade escolar e suficientemente concentrada para permitir a criação da ou das escolas correspondentes. Recenseada ou estimada essa população, os recursos do Fundo serão divididos pelos alunos potenciais e a quota assim achada constituirá a medida ou o limite do custeio das escolas. Dever-se-á criar um sistema escolar em que o custo por aluno não seja superior àquela quota, na qual deverão ser incluídos o custo da administração, do material, do prédio e do professor. Para tanto deve ser previsto, em lei, que o Fundo Escolar será aplicado nas seguintes proporções: 60% no pagamento ao magistério, 20% em material didático e conservação do prédio, 15% em construção ou ampliação dos prédios e 5% na administração escolar.
O órgão de administração das escolas, em cada município, deve ser um conselho escolar local, constituído, inicialmente, por nomeação do Prefeito, dentre pessoas representativas da sociedade local e de boa reputação. Uma vez constituído, o conselho se renovará, cada dois ou três anos, por um têrço, mediante lista tríplice de nomes indicados pelo próprio conselho e de nomeação do Prefeito.
Além das limitações legais da aplicação do Fundo Escolar, o Conselho, ao qual compete a nomeação do pessoal do ensino, só poderá escolher para as funções de ensino, de administração ou de serviço, pessoas devidamente licenciadas pelo Departamento Estadual de Educação.
Êste Departamento, libertado dos deveres administrativos, terá a seu cargo a expedição de certificados ou licenças para o exercício do magistério e de todo o pessoal que servir no ensino municipal. Mediante êsse poder, terá o Estado assegurado condições de aperfeiçoamento crescente do magistério e de todos os demais servidores da educação. Mas, não é só. Como o fundo escolar municipal será constituído dos recursos do município, acrescido da quota por aluno que o Estado lhe destinará, o Departamento Estadual se reserva o direito de aprovar, anualmente, o orçamento municipal da educação, exercendo, dêsse modo, um segundo poder de contrôle.
A lei estadual de educação que fixará essa organização deverá, mais ainda, estabelecer o direito de intervenção do Estado sempre que o Conselho Escolar Municipal se afastar de qualquer dos seus deveres em relação à aplicação do fundo escolar.
Já se está a perceber que o Departamento Estadual de Educação deverá ter organização similar ao do órgão municipal de educação. Haverá um Conselho Estadual de Educação, que administrará o Fundo Escolar Estadual, constituído dos 20% da receita tributária do Estado, e nomeará o pessoal do Departamento, cujas funções serão as de fiscalizar o funcionamento dos Conselhos dos Municípios, expedir os certificados de licença para exercer o magistério e a administração escolar, em todos os seus aspectos, e prestar aos municípios assistência financeira e técnica no desempenho de sua responsabilidade de manter a educação pública
e fiscalizar a privada.
Ao Govêrno Federal competirá, por sua vez, elaborar a lei de bases e diretrizes da educação nacional - lei complementar da Constituição - e velar pela sua execução em todo o país, por um sistema de assistência financeira e técnica, por meio da qual se efetivará a sua ação supletiva.
Do ponto de vista administrativo assim ficaria estabelecido o sistema do ensino público e privado em todo o país, para o efeito de se facultar a tôdas as localidades a constituição de suas escolas, reais e não fictícias, modestas mas não falseadas, naturais no sentido de legítimas e não de bastardas, autênticas e progressivas, refletindo os progressos efetivos de cada comunidade e nêles se refletindo, por êles influídos e nêles influentes.
E como se organizariam tais escolas? Como, em tal diversidade e diversificação, conseguir-se o mínimo indispensável de homogeneidade e equivalência, bem como sobretudo, a segurança de um progresso harmonioso, ao longo de linhas aceitáveis?
Respondo. Mediante a fixação de um certo mínimo de condições externas, como as da duração dos cursos e do número de horas do dia letivo, as da licença para o exercício do magistério e as de um sistema de exames de estado, na passagem do último ano da escola primária para o primeiro da secundária (o atual de admissão ao curso secundário), no início do terceiro e do quinto e ao fim do sétimo anos secundários, para dar ingresso ao colégio universitário, seguindo-se, por último, o vestibular, de entrada nos cursos universitários ou de escolas muito especializadas, de igual nível superior, fora das universidades.
No curso superior, repetir-se-iam êsses exames de estado ao fim do curso básico e para a concessão da licença para o exercício das profissões. Os exames de estado seriam organizados pelos Departamentos Estaduais de Educação até o sétimo ano secundário e, para o ensino superior, pelo Departamento Nacional de Educação, ou pelos organismos de casse, ou grupo profissional.
Com essa divisão de atribuições, ter-se-iam criado no país, as condições pelas quais, sem duplicação, as três ordens governamentais se empenhariam a fundo, cooperativa e inter-relacionadamente, na manutenção de um autêntico sistema escolar nacional, geral e público, para a infância e juventude brasileiras, que possuiria, no seu próprio jôgo de poderes e de contrôles, os elementos para seu indefinido progresso.
No comêço, a escola não seria pior nem melhor que a atual. Mas, à medida que se fôssem desenvolvendo as virtualidades do sistema e fôssem sendo percebidas as possibilidades do regime de responsabilidade assim criado, fôrças insuspeitadas de iniciativa e de emulação surgiriam para conduzir o conjunto do sistema nacional ou os múltiplos sistemas escolares solidários, ao mais alto nível de decência e eficiência.

* * *

Não é, na realidade, com as nossas tradições que nos devemos embriagar, mas com o nosso futuro - o brilhante futuro que nos aguarda, se o soubermos preparar. A Pátria é menos o seu passado que os seus projetos de futuro. Está claro que êsses projetos de futuro mergulham as suas raízes no passado e se apoiam no presente. Mas, a sua fôrça vem antes dos objetivos antevistos, da sua projeção no amanhã, do que dos nossos pontos de apoio em nossa história ainda não de todo livre de incertezas e fragilidades.
Sòmente agora, a bem dizer, começamos a ser uma nação com suas diversas camadas sociais já se incorporando em um todo, que é e em breve ainda mais amplamente será o povo brasileiro, considerado êle, todo êle, como a própria nação e não como parcela desdenhada e obscura, sôbre que reinava uma diminuta classe dominante.
Não se compreende, pois que estejamos a lamentar sòmente as confusões e desordens presentes, quando temos também motivos para nos rejubilar com o crescimento nacional, aceitando a responsabilidade e o imperativo de, a tempo, deliberarmos sôbre as transformações de fundo e forma que devem ser ensaiadas, a fim de conter, afeiçoar e dirigir as novas fôrças sociais nascentes, para os grandes rumos do nosso desenvolvimento como povo e nação.
Fomos, até ontem, algo de inautêntico, de fictício, confundindo a nação com a sua burocracia e as suas leis inexequíveis, algumas, e impeditivas do progresso, outras. A tradição colonial do Estado fiscal e do Estado cartório continuou pela monarquia a dentro e pela república, dividindo a nação em duas - a nação real e a nação legal ou oficial. A super-estrutura legal, tôda ela transplantada de modelos europeus, primeiro portuguêses e depois franceses e inglêses e americanos, constituía o nosso esfôrço canhestro de adaptar instituições estrangeiras e distantes, ao nosso meio. Não levávamos suficientemente em conta que as nossas condições não permitiam, em sua totalidade ou sem sábias e previdentes adaptações, essa transplantação, que trazia, pelo que lhe faltava de adequação ou reajustamentos, mal de origem que lhe iria ser fatal, pelo não desenvolvimento ou pela deformação, em face de condições reais desatendidas.
Tenhamos, agora, a coragem de lançar as bases de uma verdadeira readaptação institucional para o país. Criemos as condições necessárias a uma ampla experimentação social, mediante uma legislação proposta antes a dar os poderes e faculdades de organização do que a "organizar" a educação escolar, a educação nacional, como cousa pré-fabricada e imposta, ao jeito do que nos dava a velha metrópole de reinol e de reiúno...
Com isso, teremos cumprido o disposto na Constituição que declara livre a educação, dentro das diretrizes e bases que cumpre ao Govêrno Federal fixar, com a plasticidade e flexibilidade indispensáveis a que a Escola Brasileira, como uma planta viva e forte, brote e cresça da terra, das condições e da experiência brasileiras, substituindo a instituição enfermiça, postiça e inviável em que resultou a nossa frustrada tentativa de transplantar sòmente modelos alheios, muitas vêzes já obsoletos nos próprios países de que tentávamos, sem, êxito, copiá-los.
Temos de reconstruir a escola brasileira para novas, instantes e mais altas necessidades nacionais, que já podem ser estudadas e conhecidas, a ponto de indicarem por si mesmas os rumos a seguir.
Primeiro, temos que planejar as escolas para o mercado de trabalho existente, desde o que exija apenas o nível primário até o que imponha o nível superior. Em cada caso, temos de adaptar a escola às exigências das atividades correntes. Isto, do ponto de vista pròpriamente econômico de preparo para produzir.
Do ponto de vista social, mais amplo ou mais elevado, temos que dar à escola a função de formar hábitos e atitudes indispensáveis ao cidadão de uma democracia e, portanto, estender-lhe os períodos letivos, para se tornarem possíveis em escorreito e saudável ambiente escolar, as influências formadoras adequadas.
A escola tem de se fazer prática e ativa, e não passiva e expositiva, formadora e não formalista. Não será a instituição decorativa pretensamente destinada à ilustração dos seus alunos, mas a casa que ensine a ganhar a vida e a participar inteligente e adequadamente da sociedade.

E é sôbre a base dêsse sistema fundamental, comum e popular de educação, que teremos de formar verdadeiras, autênticas elites, dando aos mais capazes as oportunidades máximas de desenvolvimento. A plasticidade e flexibilidade da escola irá permitir-lhe que se ajuste às condições do aluno e lhe ofereça as condições mais adequadas para o seu aperfeiçoamento para não dizer sòmente crescimento.

Educação em tempos de crise

Carlos Roberto Jamil Cury é um dos maiores especialistas do país em políticas educacionais e direito à educação. O docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) analisa as perspectivas para a educação no país em tempos de crise política e econômica, que pode afetar o financiamento da área, mas também de discussões importantes como a constituição do Sistema Nacional de Educação. Na entrevista a seguir, concedida à editora Marina Almeida, ele fala sobre a inovação trazida com a discussão de mesas e pactos de negociação entre os diferentes entes federados - da União com estados e municípios, do estado com seus municípios, e de municípios limítrofes -, abrindo, assim, um caminho para o diálogo e para uma gestão efetivamente mais democrática. O professor ainda aborda outras questões importantes, como a base nacional curricular comum, o excesso de avaliações no país e a necessidade urgente de melhorar a formação inicial dos professores, com aumento da carga horária e reformulação dos currículos.
Entramos em 2015 com o Plano Nacional de Educação (PNE) finalmente aprovado e Cid Gomes assumindo o Ministério da Educação (MEC). Além disso, os cortes no governo federal também afetaram a pasta da Educação. Como o senhor avalia as perspectivas da educação nesse novo cenário?
Temos uma tensão, muito tradicional e cultural no Brasil, entre os valores proclamados, sobretudo no ordenamento jurídico, e a posterior execução das políticas educacionais. De modo geral, sobretudo nos regimes democráticos, os valores proclamados são bastante avançados, como é o nosso caso, seja na Constituição de 1988, seja no atual PNE. Entretanto, as políticas educacionais não se descolam de contextos mais amplos e hoje sabemos que o país está passando por uma crise bastante complexa que envolve do setor econômico até o setor político, óbvio que isso trará consequências para o bom encaminhamento das políticas públicas, em especial a da educação. Essa tensão só pode ter como saída positiva a sociedade civil cobrando aquilo que foi consagrado em lei, o que se torna bastante importante, sobretudo quando a própria presidente da República anuncia que o lema do próximo quadriênio será "Pátria educadora". No campo específico do PNE, o que vai além do posto na Constituição em termos de vinculação - os 25% para as redes e 18% para a União -, dependerá dos recursos do pré-sal. Como a Petrobras está em crise, não sabemos se os recursos que são esperados a partir do Fundo Social, dos royalties do petróleo, poderão irrigar a área da educação.
Sem esses recursos do pré-sal não conseguimos chegar aos 10%?
Não, de modo algum. Os 10% serão objeto do segundo quinquênio. A meta para os primeiros cinco anos é alcançar 7% do PIB, o que não é pouco. Agora, se realmente houver dificuldades com o que se espera do pré-sal, algum arranjo terá de ser feito, porque, afinal, esse é um mandamento não apenas da lei 13.005, do PNE, mas de uma emenda constitucional.
O que o senhor destacaria entre as deliberações da Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em 2014?
Primeiro, a questão do financiamento, que não está mais restrito aos 18% da União e 25% dos estados e municípios na medida em que temos novas metas a serem alcançadas. Por exemplo, a nova obrigatoriedade de escolarização para crianças de 4 e 5 anos e dos jovens de 15 a 17, sem falar na pressão da sociedade por mais creches. Outra questão é a definição da base curricular comum. O terceiro ponto é com relação ao piso salarial dos professores e a partir daí, claro, há outras dimensões: precisamos pensar na formação inicial dos docentes para recuperar a figura do professor não só por meio da valorização salarial, mas, sobretudo, por meio de uma formação que o capacite a dar conta das etapas da educação nas quais ele lecionará. É bem complexo, mas uma oportunidade raríssima de pôr a educação em pratos limpos. A saber, se vamos aproveitar esse momento como sociedade civil e se os governos vão realmente encarar isso como uma responsabilidade republicana. Mas há outros pontos que a Conae sinalizou também: a necessidade de os estados e municípios elaborarem seus planos municipais e esta­duais de educação atendendo às peculiaridades regionais e locais. Isso vai envolver de novo um movimento da sociedade civil e dos educadores para que eles possam pensar esses planos face às suas singularidades. Estamos passando por uma situação muito crítica do ponto de vista econômico e político, mas as crianças vão continuar indo à escola e as finalidades maiores da educação não podem sofrer por conta dessas contingências. É da conjugação desses três planos - Nacional, Estadual e Municipal - que poderemos, finalmente, ter um Sistema Nacional de Educação.
Como as decisões da Conae podem influenciar os rumos da política educacional?
É evidente que em tempos de crise, como os que estamos passando, é preciso atentar para quem o poder político vai dar prioridade: se para aqueles que deram um enorme apoio à reeleição da atual presidente da República ou se para preservar aquilo que foi compromissado, mesmo que a economia esteja numa situação difícil. De outro lado, a Conae apontou para campos que dependem de recursos, claro, mas apontou para outras metas que precisam ter um desdobramento a partir da aprovação do PNE. Um primeiro campo importante é o do federalismo. O artigo 7º da lei 13.005 fala em mesas e pactos de negociação, o que é uma coisa muito nova na política educacional brasileira. Até hoje se falou em regime de colaboração, mas agora há a constituição de um fórum para estabelecer critérios, padrões, que redistribuam os recursos públicos, numa dimensão de diálogo, o que é muito interessante! Esse é um campo que joga água para o moinho da gestão democrática, ou seja, pensar a gestão democrática dos recursos em relação ao federalismo.
Como isso funcionaria?
Hoje nosso federalismo está bastante desequilibrado, pelo menos na educação. Precisamos, através dessas mesas de negociação, buscar o melhor caminho para encontrar representantes que expressem o conjunto da federação brasileira e, ao mesmo tempo, tenham autoridade para que suas decisões possam ser cumpridas, senão vira um 'conselhão'. Criou-se essa figura das mesas de negociação, que são três: uma da União com estados e municípios, uma do estado com seus municípios, o que é novo e muito pertinente, e a terceira que é a de municípios limítrofes, por exemplo, os de uma região metropolitana. Essa pactuação entre os entes federativos vai ser também uma mesa que ocupará as funções que atualmente estão voltadas para o Conselho Nacional de Educação (CNE) ou não? Aqui me refiro, sobretudo, à questão curricular. Quem vai estabelecer aquilo por que a Conae se bateu tanto, que é a base nacional comum? O que é isso? Como se faz e quais são os critérios para estabelecê-la? De um lado, temos uma mesa de negociação, que a meu ver tem mais presença no que se refere ao financiamento e à distribuição de competências entre os entes federados, e de outro lado temos, em principio pelo menos, o CNE, a quem deveria caber, por atribuição legal, a definição do que vem a ser a base nacional comum.
Como o fato de o país possuir muitos pequenos municípios influencia essa discussão?
A questão dos recursos tem de ser pensada de forma equitativa, de sorte que aqueles que estão em situação de maior precariedade ganhem mais recursos. Essa segunda mesa representa uma novidade porque é a obrigação de se criar uma mesa do estado com todos os seus municípios, aí tem de haver uma forma de pensar diferencialmente no que é um município de médio e grande porte, e o que é um pequenininho, de até 10 mil habitantes, que são a maioria no Brasil. Não se pode pensar, por exemplo, que um município pequeno é uma extensão de uma Belo Horizonte.
Qual caminho o senhor vê para a definição da base curricular nacional comum?
Não podemos ter aquela definição curricular autoritária que teve vigência durante o Estado Novo, por exemplo, nem uma tal flexibilidade que se torne dispersão, como é hoje. Precisamos encontrar um meio-termo em que exista uma base nacional comum, que seja válida para todo o território nacional, mas que seja dialogada, alcançada por consenso, e não imposta de cima para baixo, e que respeite as diferenças regionais.
Após quase 4 anos de tramitação, o documento final do PNE representa um avanço para o país, apesar de todas essas dúvidas sobre sua execução e disposição dos recursos?
Sem dúvida, o PNE representa pelo menos três grandes avanços em relação ao anterior. Desta vez, pelo menos no corpo da lei, estão expressas as fontes de financiamento para que as metas possam ser alcançadas. Será que vai ser cumprido? Essa é outra conversa, mas em comparação com o anterior é um progresso. Segundo, ele tem metas mais realistas em relação ao primeiro plano. E terceiro, ele está sendo pensado no interior de uma grande pactuação federativa; o outro se referia ao federalismo, mas não criava mecanismos para colocá-lo em marcha. Este PNE proclama a necessidade de um novo federalismo e conclama um órgão que poderá ter autoridade suficiente para pôr em marcha o próprio plano. É muito importante que a sociedade civil passe a cobrar seu cumprimento, os pais, a imprensa... Se ele não for adiante com tudo que se está falando a respeito de educação, de pátria educadora, dos resultados de avaliações... seria muito triste. Não pode, nossa grande esperança é que desta vez as coisas encontrem um caminho promissor.
O PNE incluiu metas para o Ideb e Pisa. Além disso, o ministro Cid Gomes anunciou em entrevista ao jornal Bom Dia, Brasil que pretendia tornar anual a Prova Brasil, que hoje ocorre a cada dois anos. Como o aumento da importância das avaliações pode influenciar o ensino e as políticas educacionais brasileiras?
Pessoalmente acho que há um excesso de avaliações. Aqui em Minas Gerais, numa escola municipal, por exemplo, são feitas todas as avaliações do Inep, há uma avaliação feita pelo sistema municipal, outra do estado e, às vezes, ainda é realizado o Pisa. Como exigir que o ensino ocorra bem se, a cada instante, ele é interrompido com avaliações em cima de avaliações? O ministro foi muito feliz com o trabalho que fez em Sobral (CE), mas outra coisa é pensar em todos os municípios do Brasil. Acho que já temos um lote suficiente de exames e, às vezes, em vez de ajudar, mais exames acabam prejudicando.
O PNE prevê a retomada da discussão sobre a lei de responsabilidade educacional. Ela é necessária?
A lei de responsabilidade educacional, a meu ver, tem pelo menos dois tempos. O primeiro é reunir num só dispositivo legal aquilo que já existe. Nós temos, sim, uma legislação que, em princípio, não deixaria impune aqueles que não cumprem os valores pecuniários que são destinados à Educação. Isso está muito claro na Constituição, LDB e todas as leis subsequentes. Da mesma forma, há possibilidade de punição quando não houver oferecimento de vagas. Em 2016, isso vai ficar mais complicado porque se incluirão todas as crianças de 4 e 5 anos e os jovens de 15 a 17. O problema não é tanto a questão do financiamento, nem das vagas, quando se fala numa lei de responsabilidade educacional é com relação a essas avaliações. É muito difícil estabelecer um critério para um prefeito ou governador sendo que existe uma grande rotatividade de governos a cada 4 anos. Precisamos ir com muito cuidado pois, no afã de constituir uma lei severa, sobretudo com relação ao cumprimento das metas de desempenho, corremos o risco de punir apenas um elo da cadeia. E são vários: temos uma formação inicial muito precária, temos uma baixa atratividade para a carreira docente... O prefeito é apenas um elo da cadeia, sua principal responsabilidade é aplicar rigorosamente os recursos, o que não é pouco, e oferecer vagas com boas condições, mas a questão do desempenho deve ser olhada com mais cuidado.
O senhor vê uma saída a curto ou médio prazo para esse problema da formação inicial ruim?
Não vejo, não. Sinto falar isso, sou professor, em 2015 completo 50 anos de magistério, mas devo reconhecer que chegamos a tal ponto que o CNE precisaria tomar uma atitude mais rigorosa em relação à formação inicial dos professores. Não acho que um bom professor se forme com apenas 2.800 horas na licenciatura ou 3.200 horas na pedagogia. É ridículo, precisaríamos ter pelo menos 3.200 horas na licenciatura e na pedagogia subir para 3.800, além de um currículo pensado de baixo para cima, com especialistas e professores que tenham larga experiência no assunto, para que possamos equilibrar teoria e prática, como a LDB propõe.