domingo, 30 de dezembro de 2018

Somos o nosso maior inimigo



Somos lançados em um meio cuja educação é precária em relação ao conhecimento que Spinoza nos propõe. Conhecemos o mundo a partir de valores de figuras de autoridade, pouco nos ensinaram a experimentar e reconhecer as causas daquilo que nos acontece, muito nos ensinaram a julgar e acusar. A cultura e a educação dominantes são altamente castradoras, o homem predominante no ocidente é profundamente interiorizado, crente em livre-arbítrio e, atualmente, tolamente espiritualizado com as caricaturas de uma liberdade neoliberal que o cega diante da própria servidão. Resta que aquilo que chamamos de Eu ou Ego também se constituiu, dominantemente, como um repositório de fantasmas e superstições, repleto, na maioria das vezes, de castração e táticas de má-fé para (re)agir diante das angústias e infelicidades. E é desse lugar interiorizado que o homem trava terríveis batalhas contra si mesmo, às vezes por uma vida inteira.


"(…) a educação sempre foi, no seu modo dominante de ser, uma máquina de adestramento reativo e não uma máquina de adestramento que poria a vida em condições de criar as próprias condições de experimentação da existência. FUGANTI, L. Educação para potência."


Spinoza cita Adão como exemplo de um homem que desconhece as causas – o ignorante (aqui sem a conotação pejorativa). Este teria interpretado o Não comerás do fruto… como um interdito moral. O encontro do seu corpo com o corpo da maçã seria um mau encontro devido a indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição, etc., mas por ignorar as causas Adão interpreta o interdito sob a categoria do Mal. Por ignorância muitos maus encontros são acusados nas categorias do negativo – ao invés de compreender, acusamos e nos encurralamos cada vez mais como sujeitos interiorizados, pois toda acusação pressupõe uma vida marcada por um sentimento de vingança. Acusar a vida e o outro pelos nossos maus encontros pressupõe afetos do ressentimento, “E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento.” NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Eis aí o homem como o maior inimigo de si mesmo.

Nós não temos sido muito diferentes de Adão. Muitas das nossas ações e comportamentos que nos diminuem, por assim dizer, nossos fracassos, temores, constrangimentos de viver, etc., são externalizados no “Mal” do outro e do mundo a partir de um sujeito interiorizado ignorante das causas. Mas quando o outro não pode ser usado como causa o homem se empenha em atribuir causas internas como justificativas para a sua própria infelicidade. Em ambos os casos ele permanece na ignorância das causas. Importante ressaltar que nos nossos tempos os diagnósticos de doença mental podem ocupar esse lugar de legitimação de uma causa externa para construir narrativas da própria infelicidade, mas essa dimensão não exclui a internalização do fracasso e da infelicidade diante de uma sociedade de dever à felicidade e ao sucesso, apesar de tais narrativas encontrarem ressonâncias a partir de um social psiquiatrizado, a culpabilização de si também aumenta

Assim como acusamos o outro e a vida pelas nossas infelicidades, também nos rotulamos facilmente de ansiosos, impulsivos, tímidos, depressivos, irascíveis, amargurados, apáticos, etc. Quando não estamos à altura daquilo que nos acontece e damos causas internas – em geral sentimentos negativos – como justificativas, além de nos fecharmos à compreensão, ficamos à mercê de uma série de censuras e julgamentos, empenhamo-nos em verdadeiros ataques ao “eu” – o Euzinho interno… ele próprio que costuma ser um golpeador do corpo, separando-nos daquilo que nos acontece – o estado internalizado em nós.


Enfim, produzindo modos de existir e perceber as coisas, daí o servilismo se confunde com liberdade e livre-arbítrio, assim como o conhecimento, também internalizado, reduzido como capacidade de julgar através de categorias de valores binários e, sobretudo, em função da economia, não passa de uma ignorância – Spinoza não nos deixa se enganar a respeito desse tipo de conhecimento.


"Uma criancinha acredita apetecer, livremente, o leite; um menino furioso, a vingança; e o intimidado, a fuga. Um homem embriagado também acredita que é pela livre decisão de sua mente que fala aquilo sobre o qual, mais tarde, já sóbrio, preferiria ter calado. Igualmente (…) muitos outros (…) acreditam que assim se expressam por uma livre decisão da mente, quando, na verdade, não são capazes de conter o impulso que os leva a falar. Assim, a própria experiência ensina, não menos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados. SPINOZA, B. Ética, parte III, prop 2 esc."

Conhecer a causa daquilo que nos acontece nos potencializa para buscar compreendes mais efetivas junto às interações com o mundo. Romper com esse sujeito interiorizado que foi produzido, costumeiramente, como sendo causa daquilo que nos acontece e, sobretudo, perceber o devido lugar que grandes estruturas – e não meramente os indivíduos – como o estado, o capital, a religião, a linguagem, e tantas outras, ocupam, com a nossa cumplicidade (ver O ego é cúmplice), nos processos de subjetivação e produção de vida, é fundamental para nos afastar de tanta ignorância e servidão. Para tanto, prezamos por uma compreensão que vai em busca de cartografar os nossos trajetos, perceber as modificações, as nuances de alegria e tristeza, os aumentos e as diminuições da nossa potência de agir e de pensar. Nietzsche fazia muito bem isso, em seus trajetos procurava avaliar os efeitos do ambiente, do clima, da alimentação, de uma música, da temperatura etc., sobre a sua potência de agir e pensar.


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domingo, 2 de dezembro de 2018

Há folgados conscientes e inconscientes


Há folgados conscientes e inconscientes. Existe uma folga “normal” do indivíduo que nem pensa mais no seu gesto, apenas não vê o outro. Sua tranquilidade em se considerar o único ser humano do planeta é quase natural. O segundo tipo é plenamente convencido de que ser folgado é boa estratégia e quem se aproveita mais fica mais feliz. O primeiro tipo passa à frente da fila sem olhar para ninguém, o segundo olha nos olhos e ignora a ordem de chegada. 
Quando estou generoso com a humanidade à qual pertenço com alguma relutância, suponho que exista um déficit de atenção do espaço alheio, um defeito de fábrica, uma miopia específica qualquer. O folgado do primeiro tipo poderia ser uma espécie de deficiente: ele realmente não vê nada. Nos dias não tomados pela compaixão, enfatizo o ódio sobre o segundo tipo: invasor, agressivo, inimigo da civilização e que deve sofrer os rigores do desprezo e da punição com tenazes ardentes.
Os folgados falam aos borbotões em celulares, conversam em cinemas, jogam papéis no chão, pedem favores exorbitantes, eructam, bufam, empurram, perfumam-se em excesso, transformam o som do carro em trio elétrico, estacionam na calçada ou na vaga de idoso desde os dezenove anos e, acima de tudo, entendem a população em geral como pessoas a seu serviço e nascidas para seu prazer. 
A percepção do todo, de que existem mais pessoas além de mim, é fundamental. Acima de tudo, a necessidade de vigorar o princípio diplomático: o reino da minha liberdade absoluta chega soberano apenas até a fronteira do país alheio. Entre as duas monarquias absolutas, entre mim e o outro, existe uma área republicana, neutra, regida pelo bom senso e pela regra de ouro da etiqueta: respeito. 
A percepção do outro como um ser com direitos é uma educação. Começa com o costume que os pais sempre fizeram: cobram da criança o obrigado ao receber o presente. A primeira etapa é treino mesmo: tornar automático o emprego das quatro frases-amuleto contra a folga futura: por favor, com licença, desculpe-me e muito obrigado. Após o processo educativo, tende a existir uma consciência mais sutil de vida em grupo. Começa em coisas pequenas: enumerando pessoas e se incluindo na lista apenas ao fim.