sexta-feira, 20 de maio de 2016

Educação em tempos de crise

Carlos Roberto Jamil Cury é um dos maiores especialistas do país em políticas educacionais e direito à educação. O docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) analisa as perspectivas para a educação no país em tempos de crise política e econômica, que pode afetar o financiamento da área, mas também de discussões importantes como a constituição do Sistema Nacional de Educação. Na entrevista a seguir, concedida à editora Marina Almeida, ele fala sobre a inovação trazida com a discussão de mesas e pactos de negociação entre os diferentes entes federados - da União com estados e municípios, do estado com seus municípios, e de municípios limítrofes -, abrindo, assim, um caminho para o diálogo e para uma gestão efetivamente mais democrática. O professor ainda aborda outras questões importantes, como a base nacional curricular comum, o excesso de avaliações no país e a necessidade urgente de melhorar a formação inicial dos professores, com aumento da carga horária e reformulação dos currículos.
Entramos em 2015 com o Plano Nacional de Educação (PNE) finalmente aprovado e Cid Gomes assumindo o Ministério da Educação (MEC). Além disso, os cortes no governo federal também afetaram a pasta da Educação. Como o senhor avalia as perspectivas da educação nesse novo cenário?
Temos uma tensão, muito tradicional e cultural no Brasil, entre os valores proclamados, sobretudo no ordenamento jurídico, e a posterior execução das políticas educacionais. De modo geral, sobretudo nos regimes democráticos, os valores proclamados são bastante avançados, como é o nosso caso, seja na Constituição de 1988, seja no atual PNE. Entretanto, as políticas educacionais não se descolam de contextos mais amplos e hoje sabemos que o país está passando por uma crise bastante complexa que envolve do setor econômico até o setor político, óbvio que isso trará consequências para o bom encaminhamento das políticas públicas, em especial a da educação. Essa tensão só pode ter como saída positiva a sociedade civil cobrando aquilo que foi consagrado em lei, o que se torna bastante importante, sobretudo quando a própria presidente da República anuncia que o lema do próximo quadriênio será "Pátria educadora". No campo específico do PNE, o que vai além do posto na Constituição em termos de vinculação - os 25% para as redes e 18% para a União -, dependerá dos recursos do pré-sal. Como a Petrobras está em crise, não sabemos se os recursos que são esperados a partir do Fundo Social, dos royalties do petróleo, poderão irrigar a área da educação.
Sem esses recursos do pré-sal não conseguimos chegar aos 10%?
Não, de modo algum. Os 10% serão objeto do segundo quinquênio. A meta para os primeiros cinco anos é alcançar 7% do PIB, o que não é pouco. Agora, se realmente houver dificuldades com o que se espera do pré-sal, algum arranjo terá de ser feito, porque, afinal, esse é um mandamento não apenas da lei 13.005, do PNE, mas de uma emenda constitucional.
O que o senhor destacaria entre as deliberações da Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em 2014?
Primeiro, a questão do financiamento, que não está mais restrito aos 18% da União e 25% dos estados e municípios na medida em que temos novas metas a serem alcançadas. Por exemplo, a nova obrigatoriedade de escolarização para crianças de 4 e 5 anos e dos jovens de 15 a 17, sem falar na pressão da sociedade por mais creches. Outra questão é a definição da base curricular comum. O terceiro ponto é com relação ao piso salarial dos professores e a partir daí, claro, há outras dimensões: precisamos pensar na formação inicial dos docentes para recuperar a figura do professor não só por meio da valorização salarial, mas, sobretudo, por meio de uma formação que o capacite a dar conta das etapas da educação nas quais ele lecionará. É bem complexo, mas uma oportunidade raríssima de pôr a educação em pratos limpos. A saber, se vamos aproveitar esse momento como sociedade civil e se os governos vão realmente encarar isso como uma responsabilidade republicana. Mas há outros pontos que a Conae sinalizou também: a necessidade de os estados e municípios elaborarem seus planos municipais e esta­duais de educação atendendo às peculiaridades regionais e locais. Isso vai envolver de novo um movimento da sociedade civil e dos educadores para que eles possam pensar esses planos face às suas singularidades. Estamos passando por uma situação muito crítica do ponto de vista econômico e político, mas as crianças vão continuar indo à escola e as finalidades maiores da educação não podem sofrer por conta dessas contingências. É da conjugação desses três planos - Nacional, Estadual e Municipal - que poderemos, finalmente, ter um Sistema Nacional de Educação.
Como as decisões da Conae podem influenciar os rumos da política educacional?
É evidente que em tempos de crise, como os que estamos passando, é preciso atentar para quem o poder político vai dar prioridade: se para aqueles que deram um enorme apoio à reeleição da atual presidente da República ou se para preservar aquilo que foi compromissado, mesmo que a economia esteja numa situação difícil. De outro lado, a Conae apontou para campos que dependem de recursos, claro, mas apontou para outras metas que precisam ter um desdobramento a partir da aprovação do PNE. Um primeiro campo importante é o do federalismo. O artigo 7º da lei 13.005 fala em mesas e pactos de negociação, o que é uma coisa muito nova na política educacional brasileira. Até hoje se falou em regime de colaboração, mas agora há a constituição de um fórum para estabelecer critérios, padrões, que redistribuam os recursos públicos, numa dimensão de diálogo, o que é muito interessante! Esse é um campo que joga água para o moinho da gestão democrática, ou seja, pensar a gestão democrática dos recursos em relação ao federalismo.
Como isso funcionaria?
Hoje nosso federalismo está bastante desequilibrado, pelo menos na educação. Precisamos, através dessas mesas de negociação, buscar o melhor caminho para encontrar representantes que expressem o conjunto da federação brasileira e, ao mesmo tempo, tenham autoridade para que suas decisões possam ser cumpridas, senão vira um 'conselhão'. Criou-se essa figura das mesas de negociação, que são três: uma da União com estados e municípios, uma do estado com seus municípios, o que é novo e muito pertinente, e a terceira que é a de municípios limítrofes, por exemplo, os de uma região metropolitana. Essa pactuação entre os entes federativos vai ser também uma mesa que ocupará as funções que atualmente estão voltadas para o Conselho Nacional de Educação (CNE) ou não? Aqui me refiro, sobretudo, à questão curricular. Quem vai estabelecer aquilo por que a Conae se bateu tanto, que é a base nacional comum? O que é isso? Como se faz e quais são os critérios para estabelecê-la? De um lado, temos uma mesa de negociação, que a meu ver tem mais presença no que se refere ao financiamento e à distribuição de competências entre os entes federados, e de outro lado temos, em principio pelo menos, o CNE, a quem deveria caber, por atribuição legal, a definição do que vem a ser a base nacional comum.
Como o fato de o país possuir muitos pequenos municípios influencia essa discussão?
A questão dos recursos tem de ser pensada de forma equitativa, de sorte que aqueles que estão em situação de maior precariedade ganhem mais recursos. Essa segunda mesa representa uma novidade porque é a obrigação de se criar uma mesa do estado com todos os seus municípios, aí tem de haver uma forma de pensar diferencialmente no que é um município de médio e grande porte, e o que é um pequenininho, de até 10 mil habitantes, que são a maioria no Brasil. Não se pode pensar, por exemplo, que um município pequeno é uma extensão de uma Belo Horizonte.
Qual caminho o senhor vê para a definição da base curricular nacional comum?
Não podemos ter aquela definição curricular autoritária que teve vigência durante o Estado Novo, por exemplo, nem uma tal flexibilidade que se torne dispersão, como é hoje. Precisamos encontrar um meio-termo em que exista uma base nacional comum, que seja válida para todo o território nacional, mas que seja dialogada, alcançada por consenso, e não imposta de cima para baixo, e que respeite as diferenças regionais.
Após quase 4 anos de tramitação, o documento final do PNE representa um avanço para o país, apesar de todas essas dúvidas sobre sua execução e disposição dos recursos?
Sem dúvida, o PNE representa pelo menos três grandes avanços em relação ao anterior. Desta vez, pelo menos no corpo da lei, estão expressas as fontes de financiamento para que as metas possam ser alcançadas. Será que vai ser cumprido? Essa é outra conversa, mas em comparação com o anterior é um progresso. Segundo, ele tem metas mais realistas em relação ao primeiro plano. E terceiro, ele está sendo pensado no interior de uma grande pactuação federativa; o outro se referia ao federalismo, mas não criava mecanismos para colocá-lo em marcha. Este PNE proclama a necessidade de um novo federalismo e conclama um órgão que poderá ter autoridade suficiente para pôr em marcha o próprio plano. É muito importante que a sociedade civil passe a cobrar seu cumprimento, os pais, a imprensa... Se ele não for adiante com tudo que se está falando a respeito de educação, de pátria educadora, dos resultados de avaliações... seria muito triste. Não pode, nossa grande esperança é que desta vez as coisas encontrem um caminho promissor.
O PNE incluiu metas para o Ideb e Pisa. Além disso, o ministro Cid Gomes anunciou em entrevista ao jornal Bom Dia, Brasil que pretendia tornar anual a Prova Brasil, que hoje ocorre a cada dois anos. Como o aumento da importância das avaliações pode influenciar o ensino e as políticas educacionais brasileiras?
Pessoalmente acho que há um excesso de avaliações. Aqui em Minas Gerais, numa escola municipal, por exemplo, são feitas todas as avaliações do Inep, há uma avaliação feita pelo sistema municipal, outra do estado e, às vezes, ainda é realizado o Pisa. Como exigir que o ensino ocorra bem se, a cada instante, ele é interrompido com avaliações em cima de avaliações? O ministro foi muito feliz com o trabalho que fez em Sobral (CE), mas outra coisa é pensar em todos os municípios do Brasil. Acho que já temos um lote suficiente de exames e, às vezes, em vez de ajudar, mais exames acabam prejudicando.
O PNE prevê a retomada da discussão sobre a lei de responsabilidade educacional. Ela é necessária?
A lei de responsabilidade educacional, a meu ver, tem pelo menos dois tempos. O primeiro é reunir num só dispositivo legal aquilo que já existe. Nós temos, sim, uma legislação que, em princípio, não deixaria impune aqueles que não cumprem os valores pecuniários que são destinados à Educação. Isso está muito claro na Constituição, LDB e todas as leis subsequentes. Da mesma forma, há possibilidade de punição quando não houver oferecimento de vagas. Em 2016, isso vai ficar mais complicado porque se incluirão todas as crianças de 4 e 5 anos e os jovens de 15 a 17. O problema não é tanto a questão do financiamento, nem das vagas, quando se fala numa lei de responsabilidade educacional é com relação a essas avaliações. É muito difícil estabelecer um critério para um prefeito ou governador sendo que existe uma grande rotatividade de governos a cada 4 anos. Precisamos ir com muito cuidado pois, no afã de constituir uma lei severa, sobretudo com relação ao cumprimento das metas de desempenho, corremos o risco de punir apenas um elo da cadeia. E são vários: temos uma formação inicial muito precária, temos uma baixa atratividade para a carreira docente... O prefeito é apenas um elo da cadeia, sua principal responsabilidade é aplicar rigorosamente os recursos, o que não é pouco, e oferecer vagas com boas condições, mas a questão do desempenho deve ser olhada com mais cuidado.
O senhor vê uma saída a curto ou médio prazo para esse problema da formação inicial ruim?
Não vejo, não. Sinto falar isso, sou professor, em 2015 completo 50 anos de magistério, mas devo reconhecer que chegamos a tal ponto que o CNE precisaria tomar uma atitude mais rigorosa em relação à formação inicial dos professores. Não acho que um bom professor se forme com apenas 2.800 horas na licenciatura ou 3.200 horas na pedagogia. É ridículo, precisaríamos ter pelo menos 3.200 horas na licenciatura e na pedagogia subir para 3.800, além de um currículo pensado de baixo para cima, com especialistas e professores que tenham larga experiência no assunto, para que possamos equilibrar teoria e prática, como a LDB propõe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por participar de meu blog...