quarta-feira, 5 de julho de 2017

O ato de escrever nos modifica, e é por essa razão que ele faz sentido

Há muitos anos, o escritor português Augusto Abelaira (1926-2003) classificou toda a literatura do mundo em apenas duas famílias: "Grandes Esperanças" e "Ilusões Perdidas". A brincadeira com as obras-primas de Dickens e Balzac poderia ser estendida ao temperamento dos escritores, os soturnos e os solares.
Como classificar e coçar é só começar, e a ficção -o nome já o diz- não é uma ciência, pensei em separar os escritores em função de como eles veem o mundo que pretendem "revelar". As aspas se explicam adiante.
A primeira vertente seria a conspiratória. Segundo ela, somos naturalmente seres negativos que se dirigem à morte. Infelizmente, não há nada que se possa fazer a respeito porque a natureza é soberana e a subjetividade, uma mentira. Pela escrita, fomos arrancados do aqui e agora do mundo natural, ao qual não podemos voltar.
Assim, escrever será sempre um processo insidioso de ocultação, e são impressionantes os meios de que dispõe a escrita para nos enganar, criando fantasmas paralelos e arbitrários que asfixiam o real tentando simular um impossível retorno à suposta paz primitiva.
É falsa portanto a distinção entre ficção e não ficção -tudo é ficção; ou, pior, tudo é uma mentira, e a penosa ética da escrita seria torná-la límpida, trazer a mentira à luz do sol, denunciando perpetuamente o fracasso, que, queiramos ou não, se volta sobre si mesmo. Não há escape ou segurança, exceto no próprio ato de escrever, que é, necessariamente, um ato de desespero.

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