Há folgados conscientes e inconscientes. Existe uma
folga “normal” do indivíduo que nem pensa mais no seu gesto, apenas não vê o
outro. Sua tranquilidade em se considerar o único ser humano do planeta é quase
natural. O segundo tipo é plenamente convencido de que ser folgado é boa
estratégia e quem se aproveita mais fica mais feliz. O primeiro tipo passa à
frente da fila sem olhar para ninguém, o segundo olha nos olhos e ignora a
ordem de chegada.
Quando estou generoso com a humanidade à qual
pertenço com alguma relutância, suponho que exista um déficit de atenção do
espaço alheio, um defeito de fábrica, uma miopia específica qualquer. O folgado
do primeiro tipo poderia ser uma espécie de deficiente: ele realmente não vê
nada. Nos dias não tomados pela compaixão, enfatizo o ódio sobre o segundo
tipo: invasor, agressivo, inimigo da civilização e que deve sofrer os rigores
do desprezo e da punição com tenazes ardentes.
Os folgados falam aos borbotões em celulares,
conversam em cinemas, jogam papéis no chão, pedem favores exorbitantes,
eructam, bufam, empurram, perfumam-se em excesso, transformam o som do carro em
trio elétrico, estacionam na calçada ou na vaga de idoso desde os dezenove anos
e, acima de tudo, entendem a população em geral como pessoas a seu serviço e
nascidas para seu prazer.
A percepção do todo, de que existem mais pessoas
além de mim, é fundamental. Acima de tudo, a necessidade de vigorar o princípio
diplomático: o reino da minha liberdade absoluta chega soberano apenas até a
fronteira do país alheio. Entre as duas monarquias absolutas, entre mim e o
outro, existe uma área republicana, neutra, regida pelo bom senso e pela regra
de ouro da etiqueta: respeito.
A percepção do outro como um ser com direitos é uma
educação. Começa com o costume que os pais sempre fizeram: cobram da criança o
obrigado ao receber o presente. A primeira etapa é treino mesmo: tornar
automático o emprego das quatro frases-amuleto contra a folga futura: por
favor, com licença, desculpe-me e muito obrigado. Após o processo educativo,
tende a existir uma consciência mais sutil de vida em grupo. Começa em coisas
pequenas: enumerando pessoas e se incluindo na lista apenas ao fim.
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