terça-feira, 13 de julho de 2010

A construção de competências para ser professor

Volta e meia me vem à lembrança a imagem e a história da professora, objeto de observação, ao elaborar minha Monografia para Conclusão do Curso de Pós-Graduação em Coordenação Pedagógica.
Ela trazia consigo tal gosto pelo ofício, num misto de arte, alegria e criatividade que me encantava. Pelo caminho da simplicidade, da descontração e autenticidade que lhe era peculiar, fazia de suas aulas um espetáculo a olhos vistos, momentos de sedução demonstrados pelos alunos por meio de suas expressões de prazer e admiração.

Esse fato me levou a buscar nos teóricos, respostas às minhas indagações e a de outros educadores sobre questões que são lançadas acerca de quais saberes alguns professores, diferentemente de outros, utilizam, produzem e mobilizam em suas práticas, contribuindo de forma significativa com o seu fazer e garantindo-lhe trajetória de sucesso.

A estratégia de trabalho “Mapa da Mina” da qual a professora fazia uso e que comentarei mais adiante, me levava e aos estudantes, a vivenciar situações onde a fantasia do mundo do ‘faz de contas’ se cruzava com as possibilidades do mundo real. O prazer e a motivação nasciam do poder da criatividade, da alegria pelo compartilhamento e da arte de seduzir, que a leveza da proposta gerava, transformando o momento da aprendizagem em um clima de interatividade inesquecível.

Identificando características pessoais e profissionais e descrevendo os seus saberes, conhecimentos e competências, nos aproximamos de compreensões mais elaboradas.

Com o devido cuidado da análise das questões sobre o saber do ensino, apontado como “excesso etnográfico" por Tardif e Gauthier, ao se referirem à cientificidade do saber de experiência produzido pelos professores, tal como eles, interrogo: “Certamente o (a)s professor (a)s sabem alguma coisa, mas o que precisamente sabem eles? Qual é esse saber? São eles apenas canais de transmissão de saberes produzidos por outros grupos? Produzem eles, no quadro de sua profissão, um ou mais saberes?...”
Nesta oportunidade, tratarei de um dos aspectos que serviram à minha discussão no trabalho ora desenvolvido e que considero de fundamental relevância.

Os desafios, o prazer de aprender e a paixão por ensinar

Nos relatos apresentados pela professora, percebe-se nitidamente a importância que ela dava aos desafios que lhe eram propostos: o forte desejo, gosto e comprometimento por ensinar e aprender, buscar constantemente o conhecimento e novas informações. Advogada, contadora, porém era na sala de aula que conseguia desenvolver com prazer suas atividades profissionais.

Os saberes das disciplinas não constituíam obstáculos para sua prática. Os saberes sociais dos diversos campos do conhecimento oferecidos por diferentes cursos universitários garantiam um conteúdo bastante valorizado e legitimado pelas instituições escolares.

Em sua prática, não aderiu à tarefa de transmissão, como técnico ou executante. Não fez do seu aluno um depositário de saber. No seu exercício cotidiano, no contexto das interações, reuniu habilidades pessoais que passaram a incorporar sua vivência individual.

Nos relatos abaixo, são valiosas as reflexões e as conclusões tiradas pela professora e que ela resgatou através do seu depoimento:

(...) Sempre fui muito comprometida, assim de preparar a minha aula. Pesquisava em vários livros. Sempre gostei desde o começo de explicar e dar charadinhas, palavras cruzadas, até hoje eu gosto.
(...) sinto ainda uma necessidade diária de desafios! Eu sinto! É isso que faz ter sentido a minha vida...

Foi em Perrenoud, que busquei a clareza para compreender as ações praticadas pela professora. Podemos estabelecer uma relação entre o que a professora afirma e o que Perrenoud (2000, p. 36) discute, quando trata dos dispositivos didáticos que devem ser considerados para envolver os alunos em atividades que lhes sejam prazerosas.

Neste sentido, o autor não nega a importância do tipo de relação que o professor estabelece com o saber, no entanto, considera desejável que o mesmo torne acessível aos alunos, esta sua relação, assumindo junto com eles o papel de aprendiz. O autor quer dizer com isto, que não basta que o professor tenha prazer de aprender e de ensinar, é necessário que isso desperte no estudante esta mesma vontade de saber e uma motivação tal que não o faça desencorajar do objetivo ou cair no tédio, tendo em vista que muitos deles já aprenderam as mazelas do ofício de aluno.

Acompanhando o raciocínio do autor, é fundamental, portanto que o professor lance desafios possíveis de êxito sem fazer uso do “utilitarismo”. Para não fazer intervenção que seja “desastrosa” é essencial que o professor tenha consciência do seu papel, não legitimando as atividades com o argumento de que elas constituem importância vital para a humanidade, suscitando sim uma“paixão desinteressada” pelo saber.

Dessa forma é inquestionável a visão que a professora apresenta sobre a complexidade de seu fazer, tornando-o um projeto de vida, como comprova o relato:

(...) Você tem que gostar do que faz. Você gostando do que faz você cria alternativa. Você não vai dar uma boa aula, se você não gosta!... Cada dia é um dia diferente! Se ele (aluno) me questiona algo, eu não sou obrigada a saber, nem sempre, porque não sabemos tudo, mas temos que ter a humildade de falar: eu não sei, mas vou procurar saber...

Perrenoud (2000, p. 38) destaca que:“A paixão pessoal não basta, se o professor não for capaz de estabelecer uma ‘cumplicidade’ e uma ‘solidariedade’ verossímeis na busca do conhecimento. Ele deve buscar com seus alunos, mesmo que esteja um pouco adiantado, renunciando a defender a imagem do professor ‘que sabe tudo’...”.

Defende Perrenoud que tornar o conhecimento apaixonante... “Não é somente uma questão de competência, mas de identidade e de projeto pessoal do professor. Infelizmente, nem todos os professores apaixonados dão-se o direito de partilhar sua paixão, nem todos os professores curiosos conseguem tornar seu amor pelo conhecimento inteligível e contagioso. A competência aqui visada passa pela arte de comunicar-se, seduzir, encorajar, mobilizar, envolvendo-se como pessoa”.

As situações de aprendizagem articuladas pela professora

Desde o início das atividades docentes, o sujeito desse estudo, vinha se apropriando de inúmeros recursos e estratégias didáticas que favoreciam o diálogo com os alunos.

Para aproximá-los dos conhecimentos científicos, trabalhava a partir das concepções dos estudantes conforme nos coloca quando se refere às aulas simples, na linguagem do aluno e ao Mapa da Mina:

(...) Bom, eu ia trabalhar espaço geográfico... Tentava sempre fazer o mais simples possível para que ele entendesse. Espaço geográfico dá uma impressão assim de espaço, de lua, de planetas. O espaço que eu tinha que construir com meu aluno era o que tinha em volta dele, mais próximo, a casa dele, é o espaço onde ele vive! É o menor espaço. Daí a gente ia ampliando...
(...) Vai ampliando para o bairro... As ruas próximas da sua casa, quarteirões. Passa para a cidade, para o estado, até a maior esfera que é o Planeta. Isso, na 5ª série.
(...) Antes de preparar assim uma aula ... fazia uma Avaliação Diagnóstica ... fazia o “Mapa da Mina” ... Na minha primeira aula minha primeira estratégia, qual seria? Conhecer onde minha pedra preciosa morava. Então o aluno tinha que me levar da Escola até sua casa, fazendo um mapa... Eu sabia exatamente onde cada um morava. Isso me fez aprender a conhecer bem o bairro, os nomes...

Perrenoud explica que essa competência do professor é “essencialmente didática”, e sob minha ótica nada se assemelha “à aula magistral seguida de exercícios” do antigo ofício do professor, que ele cita em seus trabalhos. Essa competência, frisa:“Ajuda-o a fundamentar-se nas representações prévias dos alunos, sem se fechar nelas, a encontrar um pouco de entrada em seu sistema cognitivo, uma maneira de desestabilizá-los apenas o suficiente para levá-los a restabelecerem o equilíbrio, incorporando novos elementos às representações existentes, reorganizando-as se necessário”. (Perrenoud, 2000, p.29)

Continua ela:

(...) Ele precisa primeiro sentir sabor, pra depois ele se preocupar com linguagem. A linguagem em si não é tão importante...
(...) Apesar de toda simplicidade das minhas aulas eu acho que elas são bem significativas, tem bastante valor...

O trabalho a partir das representações dos alunos, não considera o aluno como um aprendiz de mente vazia, pelo contrário, se interessa por“compreender suas raízes”, criando espaço para discussão. Assim não banaliza suas contribuições, mas avalia sua capacidade de abstração e identifica suas dificuldades de conceituar.

A partir de situações amplas e cheias de significado, a professora conseguia seduzir seus alunos, partindo da realidade mais próxima para a mais distante através de propostas inovadoras, como era o caso de realizar desafios através de jogos, sair com eles para conhecer o bairro, desenvolver eventos onde eram ampliados os espaços para criação e reflexão etc.

A capacidade da professora de selecionar as atividades abandonando aquelas consideradas mecânicas e desagradáveis, bem como a de eliminar iniciativas que não constituíam sucesso, vem nos mostrar que ela utilizava espontaneamente o recurso da reflexão-sobre-a-ação, sem ter absolutamente, consciência deste fazer. Contudo, essa capacidade crítica possibilitava que ela recriasse as situações, indicando-nos que as concepções acerca desse processo se baseavam em modelos centrados nos alunos, os quais apresentam disponibilidades diferenciadas para aprender.

Ao organizar situações concretas de aprendizagem a professora dispunha de competências necessárias para criá-las. Os fragmentos a seguir demonstram como ela compreendia e dirigia tais situações:

(...) Poder sair com aluno, pra conhecer o bairro... Fomos conhecer os setores da economia: setor terciário, o comércio, fábrica de vassouras, mostrar como se fazem embalagens... A gente saia com uma quantidade enorme de alunos e via todo o processo... Muito interessante, porque é isso que faz aprender...
(...) A gente sai daquela aula tradicional, só dialogada e cria situações novas, como você perceber que do lado de uma rua só tem números pares e perceber que do outro só tem números ímpares. Perceber as garças, que naquela época tinham no bairro, que ficavam num campo ali e que hoje são áreas que estão se industrializando, no setor secundário; ver ruas pavimentadas e não pavimentadas, saber o que é pavimentação...
(...) Claro que não se trabalhava “conteúdo” vendo a rua, mas a idéia era que depois na sala, se o aluno fizesse o questionamento... A gente vai fazendo essas ligações... Quantas meninas varriam uma casa, mas não sabiam que a piaçava vinha da Amazônia.

Na análise que Perrenoud faz das competências, afirma que todas contribuem para animar as situações de aprendizagem e que algumas são mais específicas. Ele lembra que o conhecimento dos conteúdos é importante quando se quer instruir alguém, mas que a verdadeira competência pedagógica está em relacionar os conteúdos aos objetivos e às situações de aprendizagem. Neste particular, torna-se “indispensável que o professor domine os saberes”, diz ele, sendo capaz de identificar o que é essencial.

Nos exemplos que ela cita percebe-se que o domínio dos conteúdos didáticos concede-lhe talentos que possibilitam fluência suficiente para articular situações facilitadoras das aprendizagens, aproveita as ocasiões, atende aos interesses dos alunos, explora os acontecimentos e desenvolve tarefas complexas relacionadas à transferência dos saberes, sem passar pela exposição metódica, como chama o autor.

Neste contexto, Perrenoud (2000, p.27) considera:“Essa facilidade na administração das situações e dos conteúdos exige um domínio pessoal não apenas dos saberes, mas também daquilo que Develay (1992) chama de ‘matriz disciplinar’, ou seja, os conceitos, as questões e os paradigmas que estruturam os saberes no seio de uma disciplina. Sem esse domínio, a unidade dos saberes está perdida, os detalhes são superestimados e a capacidade de reconstruir um planejamento didático a partir dos alunos e dos acontecimentos encontra-se enfraquecida”.

Outra competência admitida por Perrenoud e que a professora parece-me revelar no seu fazer, desde o início da sua carreira, baseia-se na idéia de que“aprender não é primeiramente memorizar, estocar informações, mas reestruturar seu sistema de compreensão do mundo”.

Algumas atividades utilizadas pela professora traduzem claramente seus objetivos quanto ao trabalho cognitivo que ela disponibiliza para que o aluno domine a realidade de maneira simbólica. Através de situações-problema, era possível que os alunos se apropriassem deste problema, colocando sua mente em movimento, levando-os a construir hipóteses, proceder a explorações e tentativas, transpor obstáculos, fazer transferências e generalizações e construir conhecimentos novos:

(...) Depois do Mapa da Mina, que eu cheguei na casa dele, ele vai me mostrar como que ele mora. Vai virar um arquiteto, construir a casa dele, vai mostrar por dentro, as repartições, cômodos. Vou colocar: este é o menor espaço geográfico que você vive. (...) Gostava como gosto até hoje, de jogo de palavras, caça palavras, cruzadinhas... Eles não precisavam decorar nada, tinham que saber determinadas palavras que eram o fechamento de todo um conteúdo. (...) tentava fazer atividades, principalmente de Avaliação, que não decorasse. (...) Nunca gostei de questionário. Uma coisa “chata toda vida”.

A professora assume inúmeras vezes atitudes próprias de quem domina os conhecimentos “profissionais” e estes aparecem aglutinados a outra categoria de saberes denominados “saberes da experiência” ou “saber da prática”. Esse saber articula-se aos demais no exercício da profissão, na interação com o meio escolar, no trabalho cotidiano. Incorporados à vivência de cada indivíduo ou grupos, são habilidades específicas, formas próprias de saber fazer, de saber ser e de saber conviver bastante presentes nas concepções e práticas do sujeito que atua.

É fundamental lembrar que sua forma de ser advém principalmente das experiências vividas e de aspectos subjetivos e intersubjetivos próprios da sua dimensão pessoal.

Os saberes da “experiência” foram sendo pois, construídos, devido ao fato de se estabelecer uma relação de extrema interioridade com sua prática, fazendo-a sentir não apenas uma técnica, executante e transmissora do saber, mas uma legítima produtora de um outro saber que lhe é válido, que fundamenta sua competência, apesar deste fator se manter no nível da não consciência dessa construção.

No decorrer deste processo, a professora percebe os limites, interage com outras pessoas, improvisa e desenvolve habilidades para enfrentar situações novas. Esse contexto permite ao docente “desenvolver os ‘habitus’”, que podem ser traduzidos como dizem os estudiosos em “estilo de ensinar, em ‘macetes’ da profissão ... Os saberes da experiência fornecem ao(a)s professore(a)s certezas relativas a seu contexto de trabalho na escola...”.(Tardif et alii, 2001, p.p. 228, 229).

Esses saberes e essas competências decorrem de sua construção própria, desenvolvidos no contexto da instituição escola, junto aos alunos, aos outros professores e a partir da proposta pedagógica da escola. Neste caso, podemos reconhecer que a arte, a alegria e a criatividade foram elementos essenciais na construção dos saberes ditos da experiência ou da prática, e que os mesmos parecem ser tão legítimos quanto àqueles produzidos nos meios acadêmicos.

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