terça-feira, 31 de agosto de 2010

Poesia para quê?

A poesia talvez seja a manifestação mais excêntrica da linguagem. Esqueçamos por ora do espírito humano ou da figura do poeta, mera abstração que as teorias de estruturalistas sobre a “morte do sujeito” enterraram nos anos 60. Suponhamos, mal seguindo Michel Foucault, Jacques Lacan e Derrida, que a poesia não passe de um prurido mórbido do código verbal, recalque da “phoné” ancestral, um signo incômodo. Ou, como ensinou o linguista Roman Jacobson, uma reles sobreposição do eixo do significante sobre o do significado. Completa inutilidade. A que vem ela então? A que vem o poeta? Cada escritor tem pronta a sua resposta. Vou tentar dar a minha.

Estas reflexões me ocorrem na ocasião dos 80 anos do poeta Ferreira Gullar, que pode ajudar na busca de minha decifração. Ele nasceu José Ribamar Ferreira em São Luís do Maranhão, em 10 de setembro de 1930. Desde 1949 vem publicando volumes de poesia. São 21, o último deles recém-lançado. Intitula-se Em alguma parte alguma (José Olympio, 144 páginas, R$ 30,00). É o primeiro livro em 12 anos. O anterior, Muitas vozes, saiu no século passado. Segundo Gullar, sua poesia é filha da perplexidade, nasce de um olhar indagador lançado à matéria, ao universo, à existência. São coleções de espantos. Recolhê-los demanda pelo jeito tempo. São 59 em Algum lugar algum, divididos em quatro seções, enumeradas em algarismos romanos, que podem ser descritas assim: a vida, o universo, a arte e a memória. Suas novas surpresas acontecem sob a estranha luz do século XXI. Um século no qual o poeta ingressou pisando em ovos, talvez com receio de mostrar seus pecados líricos.

Antes de ler os poemas, é preciso ter em mente que Gullar é um escritor que não se limita à arte poética. Passeou por outros gêneros. Escreveu peças de teatro de sucesso, como Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, em parceria com Oduvaldo Vianna Filho, de 1966. Fez crônicas, biografou a psiquiatra Nise da Silveira, cometeu duas obras de ficção (Gamação, de 1996, e Cidades inventadas, de 1997). Artista plástico amador, não resistiu a praticar uma das modalidades de texto mais desafiadoras: a crítica. Tornou-se um dos grandes críticos de arte e cultura do Brasil, isso desde 1959, quando publicou Teoria do não-objeto. Um de seus ensaios mais importantes é Vanguarda e subdesenvolvimento, lançado em 1969. São doze volumes de ensaística no total. Em resumo, Gullar não pode ser considerado um poeta espontâneo. Como vários poetas de sua geração, mergulhou na polêmica artística, brigou com os artistas e poetas concretos, denunciou as vanguardas e refletiu profundamente sobre arte e poesia. Seu espanto é banhado em racionalidade.

Aos poucos se tornou figura pública. Em 1961, fundou com Carlos Lyra os Centros Populares de Cultura, como forma de resistir à banalização da cultura de massa e, em seguida, à ditadura. Perseguido (o relato de seus meses como fugitivo do exército está em suas memórias, Rabo de foguete, publicadas em 1998), foi forçado a se exilar do Brasil em 1971, instalou-se no Chile. Com a queda do presidente socialista Salvador Allende, mudou-se para Buenos Aires. E foi lá que escreveu em 1975 sua obra prima, Poema sujo. Trata-se da nova canção do exílio (a antiga, fora composta por um conterrâneo seu, Gonçalves Dias), construída sobre a saudade da terra natal e a revolta com a ditadura brasileira, que praticava censura, repressão, tortura e assassinato com um descaramento que só fazia aumentar a perplexidade dos intelectuais. Poema sujo é uma poderosa meditação sobre ser brasileiro. O poeta Vinicius de Moraes conheceu o poema da boca de Gullar em Buenos Aires e tratou de divulgá-lo informalmente no Brasil. “É o mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”, disse Vinicius. Ele próprio gravou o poema e distribuiu-o em fita cassete para os amigos. Poema sujo foi a fita pirata mais ouvida no Brasil naquele tempo, até porque o poema estava censurado. De volta ao Brasil em 1978, Gullar conseguiu levar uma vida “normal” e publicar suas obras.

No século XXI, veio a consagração. Em 2002 e 2004, foi cogitado para o Prêmio Nobel de Literatura – e é sem dúvida o candidato mais forte do Brasil. Em 2010, ganhou o prêmio Camões, dado aos grandes escritores de língua portuguesa. Hoje ele responde pelo título de poeta maior do Brasil, papel assumido antes por João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Olavo Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias. Eu colocaria a seu lado outros polemistas do verso, como Augusto de Campos, Décio Pignatari e Mario Chamie, autores que chegam aos 80 anos mais ativos e críticos do que nunca, brigando entre si, como se arte e poesia fossem as coisas mais importantes do mundo. Mas não tenho restrições se o título ficar para Gullar apenas. Seu papel de militante de esquerda lhe dá um verniz mais cintilante do que o dos colegas céticos em relação ao socialismo. E Gullar também não se rende ao monumentalismo. Tem 80 anos, mas fala e age como um jovem desbocado e irreverente. Na última Festa Literária Internacional de Paraty, ele se tornou a maior estrela, declamando seus poemas e falando diretamente aos jovens. Gullar é jovem, é pop.

Em Algum lugar algum, ele faz versos a seu gato, às bananas podres e às fofocas da São Luís de sua juventude, aos mortos queridos, ao universo, ao caos e até ao fêmur que em certa ocasião ele fraturou. São poemas diagramados na página, com os versos se espalhando de forma irregular, como fazia seu mestre, o poeta francês Stéphane Mallarmé. Como Mallarmé, Gullar reflete sobre seu exercício verbal, no poema “Fica o não dito por dito”:

“O poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer
e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer
mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?
mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?
(...)

assim,
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite”.

A poesia é a forma pura da improvisação, do dizer o que ainda não foi dito porque realmente não foi dito nem pensado, mas que, ao ser dito, torna-se uma inscrição definitiva. É o homem que se inventa para livrar-se da ideia da finitude. A poesia inscreve o homem na História, esculpe um sentimento, uma sensação, uma cisma que vibra mesmo quando o corpo do poeta não estiver mais aqui. Quando o leitor tentar abraçar o poeta “e os braços se diluem no abraço”. O poeta e seu gato: “Num dia qualquer/ não existirá mais/ nenhum de nós dois/ para ouvir/ nesta sala/ a chuva que eventualmente caia/ sobre as calçadas da rua Duvivier”. Quando o leitor não encontrar mais o poeta, ele recomenda: “pensa que resta alguma coisa de mim/ por aqui/ Não te custará nada imaginar/ que estou sorrindo ainda naquela nesga/ azul celeste/ pouco antes de dissipar-me para sempre”.

Gullar está vivo, e declamando para que a gente ouça, destilando ouro com sua verve irrefreável. Está dizendo com todas as palavras e palavrões coisas que nos interessam, nos trazem surpresa e elevação. Mas ninguém está nem aí. Pena que ninguém mais leia poesia, ou não lê tanto ou com tanta devoção como no passado. Soaria como uma jeremiada arrolar os motivos para a fuga de público: o avanço tecnológico, a dispersão provocada pelo excesso de entretenimento e informação, a queda do nível de escolaridade do brasileiro, o pragmatismo do mundo globalizado. Seja lá o que for, imagino que os poetas gostem do isolamento em relação aos ruídos de um mundo que enlouquece e não liga mais para a literatura. Eles têm prazer em contemplar a vida de um ângulo enviesado, como se a amassem e ao mesmo tempo a criticassem.

A poesia dispensa aparelhos, dispensa leitores. Ela surge e cresce no silêncio. Não serve para nada senão ensinar a viver, contemplar as coisas com paixão, a uma certa distância dos excessos. Ensina a sentir a pulsação de um espírito que talvez não seja mais que uma palavra dita, sentida, lembrada. É a ferramenta da subversão da ordem, da quebra de hábitos. Poesia é anticonsumo em um mundo cada vez controlado e submetido a esforços repetitivos. É o arcano da liberdade.

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